Qualquer tipo de posse sobre uma pessoa e violação de direitos humanos básicos são condenáveis em qualquer sociedade e Estado. Houve períodos em que os servos viviam em péssimas condições sob senhores exigentes e cruéis, e eram, assim, próximos dos escravos em seu status; no entanto, diversos historiadores apontam que, por princípio, a servidão russa não podia ser exatamente considerada escravidão.
1. Servos eram pessoas, não coisas
Em sua obra “Res Rusticae” (“Assuntos da Aldeia”), um manual sobre o gerenciamento de propriedades administradas com escravos, o escritor da Roma antiga Varro diz que um escravo é uma “ferramenta falante” (comparado a “ferramenta semifalante”, como vacas, e “ferramenta calada”, como carroças).
Os servos russos nunca foram “ferramentas”, mas considerados pessoas – antes de tudo, porque eram cristãos ortodoxos russos. Na sociedade tsarista, moralmente organizada pela religião, perceber batizados como coisas era considerado blasfêmia.
No entanto, havia “kholops” – pessoas que, de acordo com o antigo código de lei russo Russkaia Pravda, eram realmente vistas como ferramentas. Seu status jurídico poderia ser descrito como escravidão. Tornavam-se kholops por serem capturados como prisioneiros de guerra, ou vendiam-se como escravos por medo de morrer de fome, por grandes dívidas, para salvar a família etc. Os kholops não pagavam impostos, sendo a única alternativa para pessoas paupérrimas sem qualquer recurso. Em 1723, o imperador Pedro, o Grande, proibiu a existência de kholops – os que ainda restavam foram transformados em servos e começaram a pagar impostos como todo mundo. Portanto, em termos de escravidão por conceito, pode-se dizer que foi proibida na Rússia em 1723. A servidão era também humilhante, mas diferente.
2. Servidão era um sistema legalmente regulamentado de dependência
Os camponeses russos precisavam de proteção contra os saques de nômades, que ocorriam com frequência nos tempos antigos da Rússia. Já os príncipes e boiardos, precisavam de comida e suprimentos, produzidos pelos camponeses. Por princípio, era um sistema de troca e de dependência mútua: produção por proteção.
No entanto, à medida que o Tsarado da Rússia foi se desenvolvendo, guerras eram travadas, e havia necessidade de mais recursos; para controlar os servos, o Estado limitava sua mobilidade. A partir de 1497, os servos só podiam se mudar de um proprietário de terra a outro em determinadas épocas do ano. Em 1649, eles foram totalmente proibidos de deixar suas terras e proprietários por outro código legal, chamado Sobornoie Ulojenie. Esta lei também afirmava que pessoas batizadas não podiam ser compradas e vendidas. Mas, a partir do final do século 17, os proprietários de terras encontraram maneiras de comprar e vender pessoas sem suas terras.
3. Servos eram privados de alguns direitos humanos, mas nem todos
É verdade que nos séculos 18 e 19 os servos enfrentavam diversas limitações em termos de direitos humanos. No entanto, nunca houve uma lei que definisse servos como propriedade; legalmente, eles eram tratados como pessoas.
Mesmo em 1746, quando o Estado proibiu formalmente todos os russos, exceto a nobreza, de possuir servos, os padres e os comerciantes ricos encontravam maneiras de registrar servos em nome de algum nobre e possui-los de fato.
Os servos eram obrigados a trabalhar para os proprietários de terras durante a maior parte do dia útil – e geralmente tinham muito pouco tempo para trabalhar para si mesmos. De 1722 em diante, todos os camponeses do sexo masculino também tinham que pagar impostos. Já em 1730, todos os camponeses (incluindo servos do Estado, servos da nobreza e camponeses livres) passaram a ser proibidos de comprar imóveis nas cidades; em 1731, proibidos de celebrar contratos; em 1734, proibidos de organizar fábricas de tecidos; em 1739, proibidos de comprar servos para si etc – o que refletia o fato de camponeses estarem desenvolvendo habilidades de negócios.
Em 1760, os proprietários foram autorizados a exilar seus servos na Sibéria por má conduta e crimes, e também poderiam usar punição corporal contra seus servos.
4. Estado protegia os servos dos proprietários de terras
Os proprietários das terras representavam seus servos em questões jurídicas. Eles coletavam os impostos dos camponeses, mas aqueles que retinham o dinheiro podiam ser completamente privados de servos – depois de 1742. Em 1721, o imperador Pedro, o Grande, proibiu a venda de servos individuais e a divisão de famílias; em 1771, Catarina, a Grande, baniu os blocos de leilão para venda de servos.
Catarina se importava com os servos – mas somente como força para apoiar as necessidades do país durante os períodos de guerra, e porque a Rússia era vista com cautela pela Europa por ser um país onde ainda existia servidão. É por isso que, entre 1762 e 1768, Catarina iniciou o julgamento de “Saltitchikha”, uma senhoria com evidentes problemas mentais que torturava e matava seus servos.
No entanto, foi sob Catarina que o comércio de servos se tornou o mais cruel: crianças, especialmente meninas virgens, eram retiradas de suas famílias e vendidas. O comércio não foi interrompido, embora a proibição de vender servos sem terra tenha sido repetida em 1833 e depois novamente em 1842; mas permaneceu assim até o fim da servidão. Depois de 1823, o Estado proibiu os proprietários de terras de emprestarem seus servos para trabalhar para pessoas de outras castas (comerciantes ou padres). No entanto, essas leis nunca foram totalmente implementadas.
5. Servos viviam melhor que escravos (mas nem tanto)
Uma lei do Senado de 19 de janeiro de 1769 restabeleceu o fato de que toda a terra em que os servos viviam era de propriedade dos latifundiários. Mas era um erro dizer que os servos não possuíam nada. Suas ferramentas, casas, roupas e pertences particulares, muitas vezes gado e meios de transporte simples, pertenciam a eles.
O missionário croata Iúri Krijanitch (1618-1683) escreveu que, na Rússia, os servos viviam muito melhor do que nos países europeus. Nos séculos 18 a 19, segundo cálculos dos historiadores, qualquer servo russo trabalhava 2,6 vezes menos tempo que os escravos da América (sobretudo por causa do grande número de dias sagrados em que pessoas, incluindo servos, recebiam folga).
Mesmo nos tempos mais sombrios sob Catarina, os servos podiam apresentar queixas coletivas e individuais ao imperador e ao Senado. Em 1812, os camponeses foram novamente autorizados a participar do comércio e a celebrar contratos. Em 1818, os camponeses, inclusive os servos, passaram a ter direito de estabelecer moinhos e fábricas. Em 1848, retomaram o direito de possuir terras e imóveis (com o consentimento de seus proprietários). Ainda assim, eram privados de seu principal patrimônio: a terra em que trabalhavam – e nem mesmo a reforma da emancipação de 1861 lhes permitiu possuí-las imediatamente. Somente os mais trabalhadores e talentosos podiam sustentar uma vida decente, o que significava que, em muitos aspectos, diferiam pouco da maioria dos camponeses da Europa na época.
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