A renúncia do primeiro presidente da Rússia moderna, Boris Iéltsin

Boris Iéltsin

Boris Iéltsin

Dmitryi Donskoy/Sputnik
Há 20 anos, à meia-noite, os russos assistiam, como em todos os anos, a mensagem de vídeo de Ano Novo do presidente. Mas o primeiro presidente da Rússia moderna, Boris Iéltsin, não só fazia votos de um ano bom: ele também anunciava sua renúncia e pedia perdão em público.

 “Tomei uma decisão. Pensei por um longo tempo e com muita dor. Hoje, no último dia do século que termina, renuncio. (...) Entendi que eu precisava fazer isso. A Rússia deve entrar no novo milênio com novos políticos, com novos rostos”, disse, em 31 de dezembro de 1999, o primeiro presidente da Rússia, Borís Iéltsin.

Ele fez o anúncio durante seu tradicional discurso de Ano Novo, televisionado: quando todos os cidadãos da Rússia se sentavam a suas mesas, com champanhe nas taças, em frente à televisão, e se preparavam para o novo milênio – mas não para a renúncia do presidente. Em alguns locais do país, porém, o vídeo foi transmitido durante o dia, devido ao fuso-horário.

“Senti uma coisa estranha. Caiu um silêncio e continuamos sentados à mesa quando os sinos começaram a bater. Olhei para o meu pai e a minha mãe, e eles tinham lágrimas nos olhos. Ninguém na nossa família gostava muito Iéltsin. Mas foi algo muito forte”, lembra Iegor Stepaniuk, de Vladikavkaz. Ele tinha então 14 anos. E ainda se lembra daquela noite até hoje.

Em dezembro de 1999, o indicador de aprovação do governo era a mais baixo possível: somente 4%. A relação do povo com ele era, para dizer o mínimo, contraditória. Mas seu último discurso entrou para a história. Ele foi o primeiro chefe de Estado a pedir perdão à nação.

 “Os jornalistas foram trancados no Kremlin, não podiam sair da sala”

O discurso do Ano Novo presidencial foi gravado duas vezes. A primeira foi alguns dias antes de 31 de dezembro, e era um discurso comum de Ano Novo, e não uma renúncia.

“De repente, no final deste discurso de Ano Novo, ele diz: não gostei de como foi escrito. Vamos gravar em 31 de dezembro. O pessoal da televisão ficou chocado em choque total, porque era muito em cima da hora. Mas Boris Nikolaevitch estava inflexível”, contou o conselheiro de Iéltsin e autor do seu discurso, Valentin Iumachev.

Às 7 da manhã de 31 de dezembro, Iéltsin chegou ao Kremlin para gravar. Só um círculo muito restrito de pessoas sabia o que ele ia dizer - seu conselheiro, o chefe da administração presidencial, a filha Tatiana, o futuro sucessor Vladimir Putin e a mulher de Iéltsin - ele contou para ela pouco antes de renunciar.

Reconstituição do gabinete onde Iéltsin gravou discurso de renúncia.

 “Na noite de 31 de dezembro de 1999, Borís dormiu mal. Levantou mais cedo do que o habitual – por volta das seis horas. Tomou café da manhã. Começou a se arrumar para o trabalho. Já vestindo o casaco, Borís disse: ‘Naia, decidi, vou renunciar’. Corri para ele, abracei-o, beijei-o, tinha lágrimas de alegria nos meus olhos”, escreveu a mulher do ex-presidente em suas memórias, intituladas “Naina Iéltsin. Vida pessoal”.

Ele gravou o discurso em seu escritório. Depois de ele pronunciar a última frase, era possível ouvir claramente o tique-taque do relógio do Kremlin. "Depois alguém bateu à porta, depois outra pessoa e mais outra", lembrava Iéltsin. “Levantei os olhos e vi como toda a equipe de televisão, de pé, me cumprimentava. Eu não sabia onde me enfiar.”

De acordo com Iumachev, toda a equipe de TV ficou trancado em uma sala sem telefone e os celulares existentes foram confiscados para que a notícia da demissão não vazasse antes da hora. Eles ficaram ali até o meio-dia, e só foram liberados depois que todo o país tinha escutado o discurso.

Valentin Iumachev levou pessoalmente a fita para a televisão em uma limusine blindada escoltada por um carro da polícia de trânsito.

As primeiras horas que se seguiram

Putin (esq.) e Iéltsin (dir.).

Depois de gravar o discurso, Iéltsin teve uma reunião com o patriarca Aleksêi; transferiu a maleta nuclear; participou de jantar de despedida com os agentes de segurança e projeção da gravação.

Durante o jantar, ele os apresentou oficialmente a Putin como presidente interino e entregou a ese um presente – a histórica caneta com a qual assinou decretos (entre eles, o de sua renúncia). No final das contas, ele disse somente: "Cuide da Rússia". Depois disso, Iéltsin estava livre do cargo.

“Borís voltou para casa cedo, ainda estava claro. Ele nunca mais voltou ao escritório do Kremlin, nem uma vez sequer”, disse sua mulher, Naina.

Ao entrar em casa, Iéltsin disse: “Bill Clinton [então presidente dos EUA] telefonou para o carro. Não quis conversar com ele, prometi que ligaria de volta. Posso me dar a esse luxo: não sou mais o presidente.”

Fim de uma era

Protesto esquerdista contra Iéltsin.

Para alguns, as notícias sobre a renúncia não foram uma grande surpresa: um processo de impeachment já havia sido iniciado três vezes contra Iéltsin. Além disso, haviam tentado destituir o presidente pela última vez havia apenas alguns meses, quando ocorreu o famigerado discurso de Ano Novo.

A ex-deputada Irina Khakamada, que foi reeleita para a Duma de Estado em dezembro de 1999 e depois se tornou vice-presidente da Duma, foi uma das pessoas que já esperava pelos acontecimentos. “Eu era política e recebi vazamentos de informações e entendi o que estava acontecendo”, disse.

Mas o que impressionou a todos, sem exceção, foi o discurso de Iéltsin: “trágico, proferido em um estado grogue”, diz Khakamada. Ela celebrou o Ano Novo em uma estação de esqui com os amigos. Eles ficaram muito emotivos: “Eles ficaram impressionados com o texto, especialmente a parte em que ele dizia ‘quero lhes pedir desculpas’. Pode ser que não gostassem de Iéltsin, mas todo mundo entendeu que uma era terminava com a renúncia dele”.

Iéltsin em Barvikha, em 2006.

“Quero lhes pedir desculpas”, disse Iéltsin naquela noite. “Porque muitos dos meus e dos seus sonhos não se realizaram. E o que parecia simples acabou sendo dolorosamente difícil. Peço desculpas por não ter tornado realidade algumas das esperanças dos que acreditavam que nós, em uma arrancada, de uma só vez, poderíamos pular de um passado totalitário, cinzento e estagnado, para um futuro brilhante, rico e civilizado. Eu próprio acreditei nisso. Parecia que, com uma arrancada superaríamos tudo. Com uma arrancada não deu certo”.

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