Por que a URSS não era a ‘terra prometida’ para os judeus

Judeus soviéticos partindo para Israel

Judeus soviéticos partindo para Israel

Legion Media; Moshe Milner/Coleção Nacional de Fotos de Israel
Embora não oficialmente antissemita, a sociedade soviética das décadas de 1960 a 1980 expulsou milhares de judeus, inclusive da elite intelectual, para longe de seu território – Israel, EUA e outros países.

“O antissemitismo, como forma extrema de chauvinismo racial, é o vestígio mais perigoso do canibalismo”, disse Iossef Stálin em 1931, respondendo a uma investigação da Agência de Notícias Judaicas, baseada nos EUA. Assim, enfatizou que a URSS não tinha nada contra os judeus e, como um Estado internacionalista, não também não tinha nada a ver com antissemitismo. Mas a realidade não era bem assim.

Foi justamente Stálin quem varreu proeminentes líderes bolcheviques de origem judaica (Leon Trótski, Grigôri Zinoviev, Lev Kamenev e outros) da arena política soviética. Foi também ele quem, após a Segunda Guerra, lançou uma campanha em larga escala contra os judeus nas esferas cultural, científica e pública soviéticas. Oficialmente, esses indivíduos foram apelidados de cosmopolitas sem raízes, mas todos entendiam quem eram esses cosmopolitas. “Para não ser chamado de antissemita, refira-se a um judeu como cosmopolita”, dizia um ditado popular.

Quando Stálin morreu, em 1953, foi um grande alívio para os judeus: o Estado desmantelou sua campanha antijudaica. Mas, ainda assim, eles continuaram sendo um dos filhos menos amados da Pátria.

Falta de confiança

Funcionários da embaixada de Israel na sinagoga de Moscou em 1964. Três anos depois, a URSS fecharia a embaixada e os forçaria a partir

Infelizmente, a Rússia tinha uma longa história de antissemitismo: entre o final do século 19 e o início do século 20, no Império Russo, as massas com baixa escolaridade acreditavam na animosidade dos judeus em relação aos cristãos e nos boatos de que eles bebiam sangue de bebês ortodoxos. Até os anos 1950, essa difamação havia sido relativamente refutada, mas a percepção dos judeus como um povo astuto que desfrutava de grande influência em todo o mundo permaneceu.

A declaração de independência de Israel em 1948 só piorou o estado das coisas para os judeus soviéticos: a partir de então, o Kremlin passou a olhar para eles com suspeita, pensando que poderiam ter em mente interesses israelenses, e não soviéticos.

“Ser judeu era um pouco vergonhoso quando eu era jovem, essa palavra era quase proibida”, explica Lev Simkin, escritor e publicitário que cresceu na URSS nas décadas de 1960 e 1970. “Elas [as autoridades] criticavam os sionistas, não os judeus. A maioria nem sabia que sionismo nada mais é do que a ideia de criar um Estado judeu. Mas as pessoas logo pressupunham que ‘sionista’ queria dizer ‘judeu’.”

Linha tênue

Filmagens de longa soviético antissemita de 1973 que jamais foi ao ar

O antissemitismo soviético depois de Stálin era oculto: não era promovido em nível oficial, mas reduzido a descortesia e críticas a Israel na imprensa. Uma vez que Moscou apoiava fortemente os Estados árabes em seu conflito permanente com Israel, um Estado judeu era seria um inimigo natural.

As autoridades faziam o possível para manter as aparências e não ultrapassar certos limites, sendo antissionistas – mas não antissemitas. Por exemplo, o filme “Segredo e Explícito” (Os Objetivos e Atos dos Sionistas), de 1973, que usava materiais de filmes de propaganda nazistas retratando uma suposta trama judaica global não foi exibido. Leonid Brejnev decidiu que continha excessos depois de receber uma carta de um cinegrafista de origem judaica, o leal comunista Leonid Kogan, dizendo:

“É um presente para aqueles que difamam nossa nação soviética... o filme está cheio de uma ideologia estranha para nós; depois de vê-lo, você tem a impressão de que sionismo e judeus são a mesma coisa.”

Dificuldades

Passaporte soviético com seu infame 5º item que dizia 'Judeu'

Ainda assim, ser judeu na URSS era um destino difícil, especialmente porque as identidades soviéticas tinham um infame “quinto item”, no qual era preciso indicar a nacionalidade. Havia caminhos que uma pessoa cujo quinto item dizia judeu não poderia seguir: como se tornar diplomata ou servir na KGB. Ou então se matricular na Faculdade de Mecânica e Matemática da Universidade Estatal de Moscou.

“Depois de 1967, quase não havia judeus conseguindo ingressar na faculdade... Os mais talentosos, que haviam vencido as Olimpíadas de Matemática, recebiam exercícios extremamente difíceis nos exames de admissão”, lembra o publicitário Mark Ginsburg. “O acadêmico Sakharov [Andrêi Sakharov, físico e ativista dos direitos humanos] disse que levou uma hora de trabalho intenso para resolver um problema matemático dado aos inscritos judeus por apenas 20 minutos”. Essa política não era estatal: de acordo com fontes variadas, era uma iniciativa da diretoria do corpo docente. Mas o Estado também não fazia nada para tornar a MGU inclusiva.

Muitos pais judeus tentavam facilitar a vida dos filhos, descrevendo-os como russos (ucranianos, tártaros e etc.) quando mestiços. Mas nem sempre funcionava. Havia um ditado popular: “Se algo acontecer, lhe darão um soco na cara, não no passaporte”.

Estudantes judeus na URSS, 1979

Qualquer menção à herança judaica era proibida – mesmo em um assunto tão delicado como o Holocausto, ao qual o Estado soviético nunca se referia. “Não há nenhum monumento a Babi Yar”, escreveu o poeta Evguêni Ievtuchenko sobre o local do massacre de mais de 100.000 judeus pelos nazistas na Ucrânia em 1941 – e ele estava certo: a URSS jamais reconheceu nenhum assassinato em massa de judeus, insistindo que todos os cidadãos soviéticos sofreram igualmente durante a guerra.

Crescendo em uma atmosfera negativa, os jovens judeus soviéticos não se sentiam tão confortáveis na URSS. Paralelamente, Israel estava se fortalecendo, ao derrotar os países árabes nas guerras de 1967 e 1973 e proteger sua independência. “Surgiu então a imagem de um país vitorioso. E os judeus soviéticos começaram a pensar: aqui temos vergonha da nacionalidade, e em Israel, eles têm orgulho de serem judeus”, diz o jornalista Leonid Parfionov em seu filme “Judeus Russos”.

Assim, a ideia de imigração tornava-se bastante atraente.

Êxodo

Esquerda: passaporte soviético com visto de saída/ Direita: Ida Nudel, uma das imigrantes judias (antes presa na URSS), pisando em solo israelense

Durante a década de 1950 até o início dos anos 1960, deixar a URSS dificilmente era uma opção para seus cidadãos: era preciso obter um visto de saída, o que exigia atravessar o inferno burocrático (como, por exemplo, obter aprovação de seu chefe e oficial do partido) e pagar uma taxa semelhante ao preço de um carro novo. Mas em 1970, o Estado afrouxou esse controle. E havia várias razões.

O relaxamento nas relações com os EUA (em 1972, o presidente Richard Nixon visitou Moscou) fez o Kremlin tomar uma atitude para silenciar a voz daqueles no Ocidente que criticavam a URSS pela falta de direitos humanos. Além disso, houve protestos internos. Em 24 de fevereiro de 1971, um grupo de 24 judeus desesperados, aos quais havia sido negada a permissão para deixar o país, ocuparam o edifício do Soviete Supremo da URSS exigindo o direito de sair da URSS. Como conseguiram atrair a atenção da imprensa estrangeira, o governo deixou a maioria deles partir.

Mais tarde, a política soviética em relação à imigração judaica mudou diversas vezes, com relativa liberdade nos anos 1970 e restrições severas na década seguinte. Mas, em geral, os judeus se tornaram uma nacionalidade tão indesejável na URSS que os comunistas preferiam se livrar deles – basicamente, permitindo que as pessoas fossem embora. Entre 1970 e 1988, cerca de 291.000 judeus e membros de suas famílias deixaram a União Soviético, estabelecendo-se em Israel, nos EUA e em outros países.

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