“Foi como um raio que caiu do nada. A tempestade estava se formando, mas, ainda assim, foi abrupta e repentina. A primeira sensação era como se a Terra se abrisse e tudo caísse; como se houvesse um vácuo ao meu redor. O objetivo que trabalhei por vários anos desapareceu de repente (...) Não estava claro o que aconteceria a seguir”, disse o nadador russo Vladimir Salnikov, quatro vezes campeão olímpico, que foi apelidado de ‘monstro das ondas’, ao descrever suas emoções quando ouviu as notícias sobre o boicote de Moscou aos Jogos de Verão de 1984, em Los Angeles.
Preparados para tudo
O depoimento de Salnikov punha em cheque os boatos de que as autoridades soviéticas planejaram antecipadamente ignorar as Olimpíadas de Verão de 1984 como vingança pelo boicote dos EUA nos Jogos Olímpicos de 1980 em Moscou. No início de 1980, o então presidente norte-americano Jimmy Carter emitiu um ultimato a Moscou, exigindo a retirada das tropas soviéticas do Afeganistão no prazo de um mês. Como era de se esperar, o Kremlin não acatou a exigência, e os atletas americanos, com equipes de mais de 60 países, permaneceram em casa no verão de 1980.
Às vésperas dos Jogos Olímpicos de 1984, os líderes soviéticos expressavam publicamente uma atitude positiva em relação aos atletas que participariam do evento.
“Estamos nos preparando para os Jogos em Los Angeles. Ouvimos falar sobre um possível boicote do nosso lado. Mas não vamos descer para o nível de Carter”, disse a autoridade soviética Gueidar Aliev a Juan Antonio Samaranch, chefe do Comitê Olímpico Internacional (COI), em dezembro de 1982.
Histeria coletiva
O que fez a liderança soviética mudar sua abordagem em relação aos Jogos de 1984? Muito provavelmente, foi a acalorada situação política na época, com a escalada das tensões na segunda metade de 1983. Em 1º de setembro, um avião de passageiros sul-coreano foi abatido no espaço aéreo soviético, causando alvoroço no Ocidente. A isso seguiu-se a invasão dos Estados Unidos à comunista Granada e a implantação de mísseis balísticos norte-americanos de médio alcance na Europa. As relações entre as duas superpotências atingiram seu ponto mais baixo nesse período.
Em meio à atmosfera de histeria política e acusações mútuas, o Kremlin exigiu garantias escritas da segurança dos atletas soviéticos nos EUA, mas os americanos não queriam providenciá-las. Também não permitiram que os soviéticos voam diretamente da URSS para Los Angeles em voos fretados nem que o navio “Geórgia”, que era uma base atlética flutuante, atracasse em um porto americano. Em maio de 1984, o Politburo, liderado pelo secretário-geral Konstantin Tchernenko, decidiu boicotar os Jogos de Los Angeles. No total, 14 países socialistas seguiram o exemplo.
Agradecimento ao camarada
O país que mais se beneficiou com a ausência de atletas soviéticos foi – obviamente – os EUA, que conquistou 83 medalhas de ouro, 61 de prata e 30 de bronze; no total, 174 das 221 medalhas concedidas. Em relação ao número de medalhas de ouro, este é um recorde que nenhum país bateu desde então. Na cerimônia de encerramento, um comentarista americano chegou até a agradecer “o camarada Tchernenko” por ter dado “mais medalhas de ouro aos EUA do que qualquer atleta na história dos Jogos”.
Comparativamente, em 1980, a URSS recebeu apenas três medalhas de ouro, mas conquistou mais pratas e bronzes, acumulando 195 medalhas no total.
“Após os Jogos de 1980, recebemos bom financiamento e instalações esportivas de última geração. Os resultados da temporada de 1983 serviam de base para prever que ganharíamos até 62 medalhas de ouro (contra 40 medalhas de ouro da Alemanha Oriental e de 36 a 38 ouros para os americanos). Tinha certeza de que venceríamos os Jogos de 1984. As Olimpíadas de Seul, em 1988, confirmaram que eu estava certo. Por inércia, esmagamos todos [a URSS levou 55 ouros contra 35 dos americanos]”, disse Anatôli Kolesov, vice-chefe do Comitê Esportivo Estatal da URSS.
Na época, o COI tentou evitar o boicote, na esperança de negociar um acordo entre as superpotências. Embora Samaranch tenha se disponibilizado a atuar como mediador, nenhuma das partes demonstrou disposição de ceder.