A família russa que passou 8 anos navegando com os filhos

Estilo de vida
VICTÓRIA RIABIKOVA
Viver em um iate em mar aberto por meses a fio encontrando piratas no Caribe, explorando a Antártida e batendo o recorde mundial de velejar com crianças: a família Klotchkov, de Novossibírsk, fez isso tudo!

É dezembro de 2018 no Oceano Pacífico, a leste da Nova Zelândia. Uma família composta por pai, mãe e duas filhas está sentada na cabine de seu veleiro de 12 metros, o Lady Mary. A filha mais velha, Anastassia, comemora o aniversário de 17 anos. A mãe canta os parabéns para ela, com uma vela nas mãos, e depois corre até a pequena cozinha para preparar um prato comemorativo, a salada Olivier, para a filha, enquanto Anastasia toca violão. De repente, uma onda bate no barco e quase o derruba completamente. Um segundo depois, a água começa a entrar por uma escotilha aberta bem na cabeça da aniversariante.

"Tudo aconteceu tão rápido, foi inacreditável! A Nátia ficou chateada no começo, mas depois tomou do banho não planejado continuamos a celebração. E todos os outros estavam sentados de costas para a inclinação repentina do barco, então acabamos reclinando de costas. Tivemos muita sorte de nenhum membro da família estar no convés naquela hora ", diz Marina Klotchkova, mãe de Nástia.

Composta pelo capitão Andrêi, 47 anos, a esposa Marina, 46, e suas filhas Nástia, 20, e Lada, 10, a família Klotchkov completou uma viagem ao redor do mundo em um iate em 26 de novembro de 2021. Mas terminar a jornada não foi o mesmo que voltar para casa: quando a família terminou a navegação por todas as rotas planejadas, decidiu voltar aos poucos para casa.

A partir de 2014, a família circunavegou o globo de oeste a leste e vice-versa. Os marinheiros cruzaram todos os meridianos e todos os oceanos, exceto o Oceano Ártico, bem como cinco cabos do sul, incluindo o Cabo Horn e o Cabo da Boa Esperança, e o Estreito de Magalhães; visitaram a Antártida; e cruzaram duas vezes a linha do Equador.

No total, a família passou quase oito anos no mar e estabeleceu um recorde mundial ao fazer a viagem de volta ao mundo mais meridional em um iate acompanhada por crianças. Mas esta parece estar longe de ser sua última viagem.

Amor na pizzaria e as dificuldades do começo

Em 1999, Marina trabalhava em um fast food em Novossibírsk, onde Andrêi era um cliente regular.

"Ele vinha comer uma pizza nos fins de semana, no meio da noite, e foi assim que começamos a conversar, nadamos no mar de Ob [como as pessoas em Novossibírsk chamam a represa local], tocamos músicas juntos e depois isso tudo se transformou em amizade, em um relacionamento e no amor", lembra Marina.

Ambos sonhavam em viajar desde a infância e leram livros de aventura como “Os Filhos do Capitão Grant”, de Júlio Verne. No ano 2000, eles foram velejar pela primeira vez na represa de Novossibírsk. Depois de 10 anos, Andrêi se tornou depois de terminar a escola de vela e passou a participar de corridas de iates. A família Klotchkov passava os invernos no sudeste da Ásia e, no verão, viajava pela Rússia, morando em barracas.

Após uma dessas viagens, Andrêi e Marina passaram para frente seus negócios (Andrêi era dono de uma agência de finanças e Marina, sócia de uma pequena agência de publicidade) e começaram a alugar escritórios. Paralelamente, eles começaram a treinar e a preparar seu iate para uma travessia do Atlântico e uma volta ao mundo.

Em 2014, Marina e Andrêi foram velejar no Mediterrâneo com Nástia e Lada — essa, ainda com 18 meses. Segundo Marina, o primeiro ano foi o mais difícil. Alguns membros da família sofriam com enjoos, todos se sentiam isolados por causa da falta de comunicação viável com o mundo exterior e ocorriam cada vez mais discussões domésticas.

“Você sente que está no buraco negro, porque não pode sair e bater a porta, não pode reclamar com uma amiga, não pode ir à praia com os amigos e esquecer os problemas”, diz Marina. "Andrêi foi muito rigoroso naquele primeiro inverno e tentou nos transformar em um time esportivo. Um dia anunciamos a ele que também éramos uma família que precisava de amor e não só de uma mão autocrática. Nosso capitão ficou quieto por três dias, depois todos relaxaram e começaram a se relacionar de uma maneira diferente."

Segundo Marina, o autossuficiente grupo acabou servindo de "apoio mútuo". Nas discussões que se seguiram, cada membro da família se colocava no lugar do outro e não queria mais brigar.

Rotina diária e Ano Novo no mar

Normalmente, o dia da família Klotchkov no mar começa à noite, e não de manhã, muito menos com o café da manhã. Isso ocorre por volta das 20h. Nástia fica de vigia - ela fica de olho nos instrumentos e nas velas da cabine, e a cada 20 minutos sai no convés para verificar a situação do lado de fora. Entre meia-noite e 1h até as 4h ou 5h, Andrêi vigia o iate e o clima, e de manhã cedo Marina o substitui.

Às 10h, a pequena grumete, Lada, acorda e Marina dedica parte do dia a ela - juntas assistem a desenhos em inglês e bebem chá. Depois, Nástia e Andrêi acordam e tomam um brunch. A comida a bordo depende muito do clima e de quanto tempo faz que o barco saiu de terra firme. Quando estão ancorados, os membros da família Klotchkov estocam frutas, iogurte, queijo e outras iguarias perecíveis, que comem antes que estraguem. O resto do tempo eles se contentam com cereais e grãos, frutas secas e outros alimentos de vida útil longa.

Após o café da manhã, o capitão grita "Correio da manhã", o que significa que é hora de ler cartas de fãs, amigos e entes queridos "do continente", que chegam por e-mail via satélite. A família pode ficar dois ou três meses no mar sem contato direto com outras pessoas, por isso o ritual é de especial importância.

Durante o dia, Nástia e Lada fazem a lição de casa - ambas estudam remotamente na Escola de Geografia do Apóstolo André do Primeiro Chamado, usando livros e palestras eletrônicos baixados. Já Marina edita algum vídeo ou escreve um artigo ou um novo capítulo para seu livro sobre as viagens deles. Andrêi a ajuda, além de ficar de olho no iate.

Às 17:00 toda a família faz seu treino noturno, janta e se lava, e logo depois Andrêi vai para a cama, e o dia recomeça com Nástia na guarda.

"A qualquer momento, podemos ser desviados para consertar partes do iate com urgência ou redefinir as velas - a qualquer mudança de clima, largamos o que estamos fazendo e cuidamos do barco", explica Marina.

Ao desembarcar, eles reabastecem com comida e água, compram peças para o iate e fazem passeios pelos arredores - a família muitas vezes é ajudada por pessoas e guias locais. A família fez amigos na Colômbia, Malta, Austrália e muitos outros países dessa maneira, mas como viaja o tempo todo, é difícil manter contato regular.

"Na Colômbia, passamos uma semana morando com um casal de quase 80 anos. Eles nos mostraram o país e, alguns meses depois, vieram nos visitar no Panamá. Desenvolvemos uma relação de pais e filhos com eles. Na primavera, eles virão à Rússia nessa época e vamos nos ver", diz Marina.

A familia Klotchkov também passa quase todas as férias no mar. Por exemplo, a família passou o Ano Novo de 2019 em Point Nemo, um local na parte sul do Oceano Pacífico que é o ponto mais distante do mundo de qualquer litoral.

"Este é o lugar onde os detritos espaciais desativados geralmente são levados da órbita, por exemplo, estações ou naves espaciais para que o lixo espacial não caia em nossas cabeças", conta Marina.

Piratas e coronavírus

No verão de 2017, a família Klotchkov estava novamente cruzando o Caribe, entre o México e a Colômbia, às vésperas do furacão Irma. Eram pelo menos 60 milhas até o desembarque mais próximo, toda a tripulação estava cansada das ondas incessantes e então todos decidiram passar um dia descansando em algumas pequenas ilhas ao sul da Jamaica, marcadas nos mapas como desabitadas.

Mas, quando eles navegaram até uma das ilhas, viram velhas casinhas de concreto e um grupo de pescadores de camisetas surradas e calças rasgadas. Alguns dos homens não tinham dentes.

"Esses pescadores cercaram o iate em seis poderosos barcos a motor. Eles nos mostraram o melhor lugar para ancorar, nos pediam uísque e cigarros, estalaram a língua e gritaram quando Nástia apareceu no convés. Havia dezenas de homens, sem esposas ou filhos, e ficamos com medo", lembra Marina. "Eles nos cercaram por um longo tempo e já estava anoitecendo quando eles voltaram para a praia. Depois disso, nós jantamos e nos afastamos silenciosamente para o mar."

As restrições ocasionadas pela pandemia de coronavírus foram uma provação difícil. A família teve que parar na Austrália Ocidental por um ano e meio, a partir de 2020. Em 2021, os membros da família Klotchkov decidiram continuar sua jornada e voltar para casa. Eles tiveram que suportar mais de 70 dias de navegação independente - eles precisavam levar água fresca e frutas a bordo, mas nenhum país admitia seu barco por causa das normas de segurança.

"Tínhamos combinado de entrar na Ilha Christmas, mas no dia de nossa chegada nos recusaram até mesmo o fornecimento de água potável. Havia todos os motivos [para permitirem nossa entrada], as autoridades sabiam que havíamos passado muito tempo no mar sem contato com ninguém. Nessa hora, só dá para pensar: pelo amor de Deus, dois anos de pandemia e eles ainda não conseguem abrir uma exceção!" conta Marina.

Por causa disso, a família teve que recolher água das velas para consumo e agora está a caminho de casa.

Descobertas geográficas "negativas" e planos para o futuro

Os membros da família Klotchkov planejam chegar ao porto marítimo de Vladivostok em abril de 2022. Eles pretendem passar o próximo ano e meio em casa, em Novossibírsk, descansando, fazendo reparos, possivelmente trocando de iate e planejando suas próximas viagens.

Marina quer terminar de escrever seu livro, enquanto Lada planeja ir para uma escola presencial e também sonha em começar a dançar, desenhar e andar a cavalo.

"Quando eu terminar a escola, pretendo ir para uma universidade russa, e então gostaria de ir para Oxford ou Cambridge - ainda não decidi. Gosto de design e teatro", diz Lada.

Durante as viagens, Nástia conseguiu tirar uma licença de capitão de nível básico na Cidade do Cabo e sonha em retornar ao Ártico e à Antártida em um futuro próximo para levar turistas em passeios a bordo de veleiros.

"Já tenho ofertas de trabalho de ali. Vou trabalhar parte do ano lá, e o resto do tempo ficarei em casa. Também pretendo entrar no ensino superior, mas ainda não sei onde. Vou decidir depois que eu tentar a vida no iatismo", diz Nástia.

Ao longo de seus muitos anos de viagem, cada um dos tripulantes fez descobertas pessoais. Por exemplo, perto da Terra do Fogo, os membros da família Klotchkov viram golfinhos brancos pela primeira vez - eles tinham cabeças pretas e nadadeiras que lembravam a coloração dos pandas. A família nem sabia que tais criaturas existiam.

Nástia ficou apaixonada pela Antártida. "Imaginei que seria um deserto coberto de gelo e neve. E era assim, mas não em todos os lugares. Onde estávamos, havia montanhas, geleiras, o azul intenso do gelo, os pesquisadores polares. Fiquei muito impressionada com tudo isso e agora quero passar muito mais tempo lá", diz.

Os membros da família Klotchkov também fizeram uma descoberta geográfica "negativa": eles navegaram precisamente para o local onde o Recife de Maria Teresa, mencionado em “Os filhos do capitão Grant”, de Júlio Verne, deveria estar. À chegada, verificaram que a ilha não passava de lenda.

"Depois de mergulhar nessas histórias quando se é jovem, quando você chega naquele local exato é, ao mesmo tempo, um sentimento amargo e feliz. Foi um sentimento de euforia dolorosa: é a única maneira que posso colocar", diz Marina.

Por fim, a maior descoberta da família não tinha a ver com a ciência, mas com as capacidades humanas.

"Nossa principal descoberta foi que os seres humanos são capazes de tudo. O principal é acreditar e começar a dar os passos na direção necessária. Cada novo passo faz você perceber que seu sonho está mais perto do que você pensa, que não são apenas seres celestiais ou grandes nomes que realizam seus sonhos. Sonhos se tornam realidade para quem realmente quer uma coisa", arremata Marina Klotchkova.

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