“Meus pais me rejeitariam”: a vida das pessoas trans na Rússia

Estilo de vida
EKATERINA SINELSCHIKOVA
Apenas 10 anos atrás, os transexuais eram um grupo invisível na Rússia. Como sociedade, os russos tinham pouca ideia sobre o número de pessoas transgênero, quanto mais sobre suas aspirações na vida. A comunidade era muito unida e fechada para si mesma. No entanto, recentes acontecimentos lançaram luz sobre os problemas enfrentados por elas. O Russia Beyond conversou com diversas pessoas transexuais para entender sua visão sobre a vida na sociedade russa.

Quando sua família deixou a vila, Ivan, então com 8 anos, finalmente conseguiu uma pequena chance de conhecer pessoas como ele – embora não tivesse noção de qual era a diferença: toda a sua infância foi gasta sabendo que algo estava “errado” com seu corpo, mas não fazia ideia do que exatamente.

O cenário era Chita – uma pequena cidade perto da fronteira com a Mongólia, a 6.300 km a sudeste de Moscou. Lá, Ivan, de 19 anos, chegou à conclusão de que era gay. Acabou conhecendo pessoas da comunidade LGBT local, e foi em uma dessas festas que alguém lhe perguntou qual era o seu gênero. Confuso, ele procurava respostas no YouTube.

Não muito tempo depois, aos 23 anos, Ivan saiu da casa de sua família e começou um tratamento com hormônios que transformaria seu corpo no de uma mulher. A decisão veio após a tentativa fracassada de suicídio e de um período em um centro psiquiátrico.

A cultura transgênero na língua russa não é tão rígida com seus pronomes quanto na língua inglesa – o que significa que uma pessoa transexual na Rússia pode estar bem com um pronome de gênero binário tão bem quanto um neutro. Para Ivan, o pronome é “ela”.

Agora, aos 24 anos, a única outra pessoa que sabe o que Ivan está passando é sua irmã.

“Eu acho que meus pais podem estar suspeitando de algo, embora nunca façam perguntas”, conta Ivan, um indivíduo magro com rosto delicado e cabelo raspado, o que torna mais conveniente usar uma peruca.

Seu corpo já havia começado a mudar. Ela está começando a usar roupas folgadas com mais frequência e tem certeza de que os pais não aprovariam. “Eu os conheço bem. Eles me deserdariam. Eu não quero perdê-los. As coisas devem continuar do jeito que estão agora, é melhor assim”, diz Ivan, acrescentando que já planeja seu “ato de desaparecimento” – e que consistirá em mudar de cidade, realizar a cirurgia de mudança de sexo, trocar de nome e começar uma vida nova. “É melhor desaparecer do que me assumir”, explica. O único obstáculo é dinheiro. Ela tem certeza de que sua história não tem “nada fora do comum” – que é isso que acontece com todo adolescente confuso de cidade pequena que sabe que seu corpo “os traiu. Não pertence a eles”.

Quando a biologia fala mais alto

“Minha história é bem diferente”, diz Victoria, de 22 anos. “Eu também passei por muitas coisas, é claro. Como você explica para sua própria mãe ou para qualquer outra pessoa que você vive dentro de um corpo que não é o seu? Como se explica uma coisa dessas?”

Victoria, que prefere usar um nome fictício, ainda é identificada como homem no passaporte, bem como fisicamente. Mas o armário dela não contém um par de jeans em quatro anos – apenas saias e vestidos. “Jeans são muito unissex”, diz ao Russia Beyond.

Ela mora no enclave de Kaliningrado, no extremo oeste da Rússia, com uma população ligeiramente maior que a de Chita, cerca de 460 mil habitantes.

Acredita-se que as pessoas da cidade grande tenham mais oportunidades: comunidades, passeios e outras coisas que não se tem em locais menores. Mas Victoria diz ter sorte mesmo assim: ela tem amigos, comunica-se com a família e mantém um relacionamento com um homem. A única mudança física foi uma cirurgia de aumento de mama, embora já se considerasse “sortuda”. Seus seios começaram a se desenvolver por conta própria, o que distingue Victoria de alguns outros transexuais com quem já conviveu.

“Aos 14 anos, eu tinha certeza absoluta de que eu era uma menina e não podia viver de outra maneira. Eu não preciso, e não vou”, conta. “Mas algo também estava errado fisicamente. Quando meus colegas começaram a ganhar voz de homem e desenvolver as maçãs de Adam, nada acontecia comigo”, continua.

“Meu pai nunca morou com a gente, eu e ele nunca nos comunicamos. Minha mãe nunca desistiu de me transformar em um ‘jovem normal’, até tentou vários esportes ‘de menino’, como tae-kwon-do e boxe. E até me levava ao cabeleireiro regularmente. Antes dos 16 anos, ela era a única a comprar todas as minhas roupas – ‘de macho’, claro. Ela me dizia: ‘eles só vão zombar de você na escola’. E ela estava certa. Mas toda oportunidade que eu tinha,  eu dizia a ela: ‘mãe, basta olhar para mim’.”

Os médicos disseram que o corpo de Victoria estava naturalmente produzindo mais hormônios femininos que masculinos, de modo que ela não precisaria de um tratamento hormonal. Quando a faculdade acabou, isso a levou a jogar fora todas as roupas masculinas e fazer a transição completa para um guarda-roupa feminino.

“Eu me encaixo perfeitamente na sociedade, já que não uso hormônios. Minha psique está no lugar certo. Outros normalmente têm episódios graves, são potenciais suicidas, tomam inúmeras pílulas. É assim que eles enlouquecem”, diz Victoria.

No entanto, segundo ela, os transexuais frequentemente “enlouquecem”, já que, de fato, pertencem a um dos grupos mais “invisíveis”, com quase nenhum direito. Ivan pode atestar isso. “Eu sou uma ovelha negra. Eu não tenho amigos. Nenhum relacionamento”, diz. “E ninguém está com pressa de colocar minha vida nos trilhos.”

Da percepção à cirurgia

Como membro das ONU, a Rússia adere às definições fornecidas pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Até junho de 2018, o órgão internacional considerava o transgenerismo uma doença mental, semelhante à esquizofrenia. Agora, porém, vê a condição como “outra versão da norma”, embora o ciclo vicioso permaneça.

A cirurgia de redesignação de gênero só pode ser realizada com permissão especial de um painel envolvendo psiquiatra, sexólogo e psicólogo. Para ter a chance de ser analisado pelo painel, é preciso primeiro ficar sob supervisão por um período de oito meses a dois anos. Se a pessoa não conseguir demonstrar sua identidade transgênero, a cirurgia é negada. O problema é que, sem o procedimento, não se pode alterar documentos, gênero ou nome legalmente. Isso representa um problema adicional para aqueles que se sentem confortáveis ​​com a natureza transgênero sem qualquer tipo de cirurgia.

Há situações extremas quando uma mulher transgênero tem que ser enviada para uma prisão masculina; ou quando um passaporte com uma fotografia feminina, mas um nome masculino (ou vice-versa), é apresentado em hospitais, alfândegas, aeroportos e, mais notavelmente, quando a pessoa se candidata a um emprego.

“Eu tentei encontrar trabalho como garçonete, vendedora, empregada doméstica, bem como na vida noturna. Tudo ia bem até o momento em que eu tinha que mostrar meus documentos”, diz Victoria. “O melhor que você recebe é ‘já encontramos alguém’ ou ‘entraremos em contato’. Eu também escutava: ‘Mas você é um homem – por que você se tortura? Por que você quer mudar a sociedade se portando dessa maneira?’”

“Sou maquiadora autodidata e costumava trabalhar em casa. Estou desempregada”, diz Victoria, acrescentando ter convicção dos motivos pelos quais enfrenta essa situação.  “As pessoas são intolerantes. Elas não se sentem bem em torno de pessoas como nós. É uma questão de reputação para elas”, explica.

Ivan, que trabalha como cabelereiro em um salão local, acredita que o setor de beleza é praticamente o único ao qual um transexual tem acesso, embora não seja possível ganhar o suficiente para um procedimento de redesignação de gênero desse modo. “Uma vaginoplastia custa, pelo menos, meio milhão de rublos [cerca de US$ 8.000]”, afirma.

Segundo Ivan, é por isso que muitos em sua situação recorrem à prostituição.

“É fácil entender essas pessoas. Sem emprego, sem dinheiro, sem família, sem nada a perder. Passam o tempo todo sonhando com a cirurgia e economizando. Exceto, por algum motivo, que eles não conseguem entender que, depois, ninguém os desejará de qualquer maneira. E se quiserem, serão tratados como um objeto”, diz.

A lógica do dia a dia

Quando Victoria começou um relacionamento com um homem, ela ficou quieta por um mês sobre quem realmente era. Ele também não suspeitou de nada. “Eu tive que dizer. Nós não tínhamos relações sexuais. Mas eu nem sequer fiz minha cirurgia”, conta.

Victoria confessa que o jovem teve um colapso e gritou com ela por um longo período. “Ele ficou bem machucado. Seu estado emocional me deixou realmente com medo de que ele fizesse algo com si mesmo”, lembra. Mas, para sua surpresa, o namorado acabou se recuperando, e os dois ficaram juntos por mais um ano e meio.

Mas pior provação nem é portar documentos de identificação contraditórios.

Em maio passado, Iúlia Savinovskikh, que possui um blog sobre os preparativos para correção de gênero, recebeu uma ordem judicial para entregar os seus dois filhos adotivos depois de fazer uma mastectomia.

Dois meses depois, o Facebook começou a campanha #трансфобиянепройдет, após uma mulher transexual ser impedida de entrar em um clube e chamada de “monstro”.

Ivan ressalta que a sociedade realmente tem um problema quando até mesmo uma criança pequena pode correr até você e chamá-lo de “bicha” sem receber um chamado de um adulto. Victoria concorda, acrescentando que todo mundo parece disposto a entrar em sua pele, sua saia, em sua cabeça e ensinar-lhe algumas morais. “Você gostaria de saber como isso me faz sentir? Eu não entendo essa lógica. Há abusadores que espancam mulheres, há assassinos por aí. Por que você não os trata dessa maneira? Como somos pior? As pessoas veem tudo isso como um absurdo, como se tivéssemos nos convencido de nosso próprio sofrimento. Como se explica que você não há outro jeito? Não se pode viver em um corpo com o qual nasceu, porque não é seu corpo. Você não tem escolha.”

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