O filme ‘O Desafio’ (tradução livre do título em russo, ‘Vizov’) estreou recentemente nos cinemas de toda a Rússia. A grande novidade, porém, é que, para produzi-lo, o diretor Klim Chipenko (que também atuou como cinegrafista e suporte de iluminação) e a atriz Iúlia Peresild (que foi sua própria maquiadora) passaram quase duas semanas na Estação Espacial Internacional (ISS, na sigla em inglês), interpretando cenas-chave do roteiro. De acordo com a sinopse do filme, uma cirurgiã comum sem qualquer treinamento é obrigada a ir para a ISS para salvar a vida de um cosmonauta.
Filmes sobre o espaço foram filmados com sucesso na Terra antes. Por isso, a pergunta que fica é: era mesmo necessário voar para tão longe agora?
Qualquer diretor irá confirmar que é extremamente difícil reproduzir a ausência de gravidade na Terra. Mas, ainda assim, é possível. Um precedente interessante foi o clássico de ficção científica soviético Per Aspera ad Astra (“Através dos espinhos para as estrelas”, de 1981). Uma das cenas espaciais do longa foi filmada em uma piscina cheia de água — e os papéis dos cosmonautas foram interpretados por mergulhadores em trajes futuristas. A principal desvantagem desse método eram as inevitáveis bolhas de ar debaixo d’água — mas uma saída foi encontrada: os atores foram filmados de cabeça para baixo, para que o ar “descesse” e não chamasse tanto a atenção.
Mais frequentemente, os cineastas buscam cosmonautas reais, em vez de mergulhadores. Para isso, usam um avião especial para treinamento. Primeiro o piloto decola abruptamente, e depois desce — também abruptamente; como resultado, simula-se gravidade zero a bordo. Mas dura apenas 25 a 30 segundos por vez. É por isso que os criadores de ‘Apollo 13’ (1995) tiveram que fazer 612 lançamentos para captar apenas quatro horas de filmagem.
Uma opção mais barata, porém não menos complicada, é erguer os artistas com um complexo sistema de cabos e suspensões, que são apagados na pós-produção. Foi assim que ‘Gravidade’ (2013) acabou sendo filmado.
No entanto, é bastante desafiador alcançar a ilusão total de antigravidade dessa maneira — é preciso muito treinamento até que um ator encontre o equilíbrio certo e pareça à vontade.
Além disso, as leis da física limitam o ângulo de filmagem, e os cinegrafistas não têm tantas alternativas para filmar um artista suspenso por fios. De frente é mais fácil, mas de cima ou de lado torna-se um problema. Na hora da edição também fica especialmente complicado fazer uma mudança sequencial de ângulos nessas cenas de forma natural. Antes de 'O Desafio', apenas Alfonso Cuarón se permitiu fazer isso em ‘Gravidade’.
Os criadores de ‘O Desafio’ deixaram, porém, todas essas restrições no passado. Foram, no total, doze turnos completos de filmagem na ISS, resultando em 78 horas e 21 minutos de imagens. O filme em si dura mais de uma hora – e durante esse tempo, vemos a atriz Iúlia Peresild nos ângulos mais inimagináveis, incluindo seus voos na estação orbital sem nenhuma aderência. Não apenas ela, mas o próprio cinegrafista (e diretor Chipenko), se move como se estivesse flutuando.
Por incrível que pareça, a viagem não tornou o orçamento geral radicalmente mais alto do que os filmes “comuns” na ausência de gravidade. A verdade é que, em alguns casos, custou bem menos. O orçamento oficial de ‘O Desafio’ foi inferior a 1 bilhão de rublos (aproximadamente US$ 12 milhões).
O movimento do cabelo, mesmo em nossa era de imagens geradas por computador, ainda é um grande problema. Até mesmo o perfeccionista Christopher Nolan teve problemas com isso. Uma das raras falhas técnicas em seu filme ‘A Origem’ pode ser encontrada na cena de gravidade zero: o personagem de Joseph Gordon-Levitt se move pelas paredes de forma mais espetacular do que o Homem-Aranha, mas seu cabelo segue intacto.
Pode-se usar como desculpa o fato de Gordon-Levitt estar com um corte muito curto. Mas fato é que uma das tarefas mais difíceis é desenhar de forma realista cabelos longos flutuando na ausência de gravidade. É por isso que as cosmonautas e astronautas nos filmes geralmente estão de cabelo curtinho ou presos em coques e rabos de cavalo.
Em ‘O Desafio’, esse problema foi resolvido pelo próprio espaço. Nenhum efeito visual foi necessário – o cabelo de Peresild parece ganhar vida própria, criando um efeito impressionante de verossimilhança.
‘O Desafio’ prova ainda que as pessoas têm uma visão errada sobre o espaço. Já estamos familiarizados com as imagens da ISS nos noticiários e documentários da TV. No entanto, percebeu-se que a estação parece um pouco diferente quando filmada em uma câmera RED profissional — e por um cinegrafista profissional. Apesar do apelo, não é tão hi-tech e futurista, e sim mais desgastada do que estamos acostumados a ver. Mas também não é tão bagunçada quanto retratada em filmes como ‘Armageddon’ (1998).
Também fica evidente que não temos ideia de como a cor e a luz são realmente no espaço. Chipenko usou três painéis de iluminação LED em órbita, mas a luz das vigias, que mudavam constantemente, fez seus ajustes, brilhando em vermelho, azul e verde no rosto de Peresild. Tais “efeitos” estéticos não seriam planejados na Terra.
Atualmente, quando qualquer elemento pode ser recriado em um computador, o cinema mundial está, curiosamente, voltando aos efeitos especiais feitos pelo homem. O exemplo mais marcante é o próximo filme de Christopher Nolan, ‘Oppenheimer’, no qual até mesmo uma explosão nuclear foi simulada sem o auxílio de recursos gráficos. ‘O Desafio’ se encaixa nessa tendência; a textura autêntica na tela é mais eficaz do que a gerada por computador. Ainda assim, cabe lembrar que o filme russo também tem alguns efeitos; entre eles, na cena épica da caminhada espacial, que não pôde ser filmada na viagem.
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