Na turbulenta década de 1990, uma jovem finlandesa e um russo casca grossa se encontram em um trem que vai de Moscou a Murmansk. Mas o que começa como um pesadelo toma um rumo oposto, e ‘Compartimento nº 6’ se revela uma relíquia culturalmente importante do passado soviético.
O filme do diretor finlandês Juho Kuosmanen teve sua estreia mundial no Festival de Cinema de Cannes de 2021, onde ganhou o Grande Prêmio do Júri e uma enxurrada de boas críticas. Atualmente, está em exibição em cinemas na França, Suíça, Finlândia e Itália e deve ser lançado nos Estados Unidos e no resto da Europa no início de 2022. No Brasil, ‘Compartimento nº 6’ estreia no Festival de Cinema do Rio de Janeiro neste domingo (12).
Juho Kuosmanen/CTB Film Company, 2021
Estrelado por Iúri Borisov, um dos atores mais promissores da Rússia, o longa de Kuosmanen é a entrada finlandesa deste ano para Melhor Filme Estrangeiro no Oscar.
Cenário e atmosfera
Antes de tudo, é bom esclarecer: ‘Compartimento nº 6’ não tem nada a ver com uma das histórias mais pungentes da literatura russa, ‘Enfermaria nº 6’, de Anton Tchékhov, ambientado em um antigo asilo psiquiátrico.
É um tipo de road movie com autenticidade, empatia e humor gentil. Em segundos, faz parecer que eles entraram na máquina do tempo e viajaram de volta à Rússia pós-soviética dos anos 1990.
O drama de Juho Kuosmanen ecoa o estilo cru característico de Aleksêi Balabanov, cuja franquia ‘Brat’ (do russo Irmão) foi considerada uma das criações cinematográficas mais importantes da Rússia pós-soviética.
Аleksei Balabanov/CTB Film Company, 1997
‘Compartimento nº 6’ conta com Serguêi Selianov, o mesmo produtor russo independente que trabalhou com Balabanov em todos os seus filmes, incluindo os dois longas de ‘Brat’.
Aqui, o cineasta finlandês de 42 anos consegue girar o relógio de volta no tempo, recriando uma atmosfera de liberdade irresponsável e abertura para o mundo característica da realidade do início pós-soviético. O espírito audacioso dos anos 1990, que se instalou após o colapso da União Soviética, é retratado pelo diretor e seu diretor de fotografia J-P Passi com uma rara combinação de honestidade e humanidade, bem como grande autenticidade. Ao ouvir ‘Voyage, voyage’, o hit internacional no final dos anos 1980 da cantora francesa Desireless (imensamente popular na URSS e no Brasil também), a viagem ao tempo é real.
Personalidade russa como ela é
Um grupo de intelectuais está dando uma festa em um espaçoso apartamento em Moscou nos anos 1990. Pessoas felizes e embriagadas tentam identificar os romances de Victor Pelevin a partir de citações icônicas, levantando questões filosóficas sobre o sentido da vida.
Juho Kuosmanen/CTB Film Company, 2021
Laura (Seidi Haarla), estudante de arqueologia da Finlândia, divide este apartamento boêmio com sua namorada falante e sexy Irina, professora de literatura. É o último dia de Laura em Moscou. Depois de uma noite de amor, ela e sua namorada deveriam visitar petróglifos (pinturas rupestres) na cidade portuária de Murmansk, a cerca de 2.000 km da capital russa.
Mas Irina termina com Laura na hora de partir, e a garota finlandesa, que fala russo fluentemente, embarca no trem sozinha – somente para descobrir que seu vizinho de assento no ‘Compartimento nº 6’ é um minerador russo grosseirão chamado Lyokha , que fuma como uma chaminé e bebe como se não houvesse amanhã. Ódio à primeira vista. No início Laura faz o melhor para se esquivar de Lyokha e de suas piadas sujas e obscenas, até que fica evidente que seu companheiro de viagem não é o que ela pensava.
Juho Kuosmanen/CTB Film Company, 2021
Com o passar do tempo, Lyokha mostra sua verdadeira face como um homem sensível, sentimental e compassivo que precisa de amor. Laura e Lyokha exibem uma tensão honesta e uma química sólida à medida em que seus personagens tentam encontrar uma linguagem comum. Ambos estão amargurados, necessitados e desesperados para serem amados.
Como Danila Bagrov, personagem de cult de Aleksêi Balabanov, que se tornou a voz da geração pós-soviética da década de 1990, o protagonista desta história triste, porém inspiradora, também é uma espécie de anti-herói, cuja vida está fadada a descarrilar a menos que um milagre aconteça ( russos gostam de arriscar e, como já falamos, depositam sua esperança nos “avôs”, uma confiança na ajuda de Deus e forças sobrenaturais).
Juho Kuosmanen/CTB Film Company, 2021
As pessoas raramente são o que parecem, e Lyokha não é exceção. Após uma análise mais detalhada, o protagonista de ‘Compartimento nº 6’ acaba sendo a epítome da compaixão altruísta e do altruísmo, sempre pronto para dar uma mão a um completo estranho. Laura, por outro lado, é a personificação da indiferença, solidão e incerteza nórdicas.
O engraçado é que os opostos se atraem e os dois, que precisam de uma pausa de sua solidão, vivenciam alguns dos melhores momentos de suas vidas em um trem sujo e fedorento, atravessando nevasca em direção ao futuro indefinido. “Chegar lá” é um verdadeiro desafio. Não é à toa que um dos personagens diz a seguinte frase de efeito: “Para se entender, você precisa entender o seu passado”.
Juho Kuosmanen/CTB Film Company, 2021
‘Compartimento nº 6’ é uma história de dúvidas da mente, autoquestionamento e busca da alma. Embora aparentemente sombrio, é cheio de promessas e esperança.
‘Compartimento nº 6’ estreará neste domingo (12) às 22:00 na sala Estação NET Botafogo , no Rio de Janeiro. Estão previstas mais duas sessões durante o Festival do Rio. Para saber mais detalhes, acesse http://www.festivaldorio.com.br/br/filmes/hytti-nro-6
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