O filme "Russian Youth” (em russo, “Máltchik russki”, ou seja, “O garoto russo”), está em cartaz para o público brasileiro atualmente na plataforma Mubi (e pode ser assistido gratuitamente por meio de uma parceria entre o Mubi e o Russia Beyond). Ele foi exibido pela primeira vez durante o 69° Festival Internacional de Cinema de Berlim, em 2019, e é o primeiro longa-metragem da carreira do diretor russo Aleksandr Zolotúkhin, aluno e seguidor de Aleksandr Sokúrov (“Arca russa”, 2002, e “Francofonia”, 2015).
“Russian Youth” se passa em dois planos paralelos: o filme em si e um ensaio para um concerto de música. O filme é ambientado no início da Primeira Guerra Mundial, a guerra "imperialista". Apelidada na Europa é de Grande Guerra ela, no entanto, costuma ser considerada um evento secundário para a Rússia - apesar de sombrio, obscurecido pelas tempestades da Revolução e da Guerra Civil.
O enredo trata de um simples garoto russo, Aleksêi, interpretado por Vladímir Korolióv, que aparece na frente de batalha com um ingênuo sonho de conquistar glórias e medalhas. Porém, logo na primeira batalha, ele perde a visão durante um ataque químico do exército alemão, momento no qual se inicia para ele uma outra guerra.
Aleksandr Zolotukhin, Lenfilm, 2018
A cegueira desorienta Aleksêi, não faz dele uma testemunha confiável do que está acontecendo e restringe suas ações. Aleksêi não tem influência na história, em seu destino ou mesmo na guerra: sua sorte parece ser acidental e singular.
As cores suaves, levemente embaçadas, bem como o recurso de um inesperado slow motion, transmitem uma sensação de sonho e realidade histórica ao mesmo tempo. A existência do jovem, dentro da história, pode ser interpretada em termos de tragédia e destino, e a luta contra esse destino. Como resultado, o enredo parece ser um fragmento da obra que envolveu outro menino: Ivan, do clássico "A infância de Ivan" (1962), de Andrêi Tarkovski (1932-1986).
Não é à toa que, simultaneamente à história do garoto Aleksêi, há um ensaio de um concerto de música. Não é um ensaio teatral, um esboço de uma tela ou escultura, mas, sim, um trabalho com arte não visual, não narrativa, construída na base de sensações. Talvez isso não seja apenas a criação de um espaço sonoro especial, uma possibilidade de fechar os olhos e se colocar no lugar no personagem principal, mas também a chave para a percepção da própria história.
O acompanhamento musical do filme é um ensaio da orquestra Estatal de São Petersburgo sob a regência do maestro Mikhaíl Gólikov, que se prepara para apresentar o Concerto para piano n° 3 em ré menor, Op. 30 e as "Danças Sinfônicas" de Serguêi Rachmaninoff.
Com sua exaltação romântica, Rachmaninoff transmite perfeitamente não apenas a atmosfera da virada do século (e o século 20, segundo a opinião de muitos, realmente se inicia com a Primeira Guerra Mundial), mas também o arco trágico, o da premonição de uma catástrofe mundial. O concerto para piano n° 3 é considerado uma das obras de mais difícil execução para piano.
A obra, além de dialogar com outras no plano cinematográfico, igualmente pode ser uma releitura de clássicos da literatura russa. Um deles é “Guerra e paz” de Liev Tolstói, defensor do pacifismo que mostra o quanto uma guerra é antinatural e os soldados, “bucha de canhão”.
Outro é Dostoi[evski, em relação ao qual podemos destacar o próprio título: “menino russo”, expressão usada no último grande romance de Dostoiévski, “Os irmãos Karamázov”. Nesse, Aleksêi, o irmão mais novo, é em quem Dostoiévski deposita suas maiores esperanças sobre o futuro da Rússia.
Segundo Dostoiévski, os “meninos russos” são aqueles que carregarão o fardo de responder às principais questões da humanidade – sobre a existência ou não de Deus e qual será o caminho a seguir.
Cosac & Naify, 2012, Editora 34, 2019
“Russian Youth” apresenta dois ensaios simultâneos: o dos soldados para a guerra e o dos músicos para o concerto. As ações dialogam, a tensão com a música, os sons com as vozes, gritos e rangidos. Os músicos, em suas expressões, gestos e sons, parecem refletir o estado emocional de Aleksêi no filme e a ele responder.
Zolutúkhin parece mostrar todos como vítimas das circunstâncias, daquilo que vem de forma inesperada: do céu, como os aviões inimigos, ou da terra, como um desastre natural.
Edelcio Americo é doutor em Letras pelo Programa de Literatura e Cultura Russa da Universidade de São Paulo, tradutor, intérprete e professor de língua russa.