Por que as feministas odiariam ‘O Herói do Nosso Tempo’ na atualidade?

Cultura
OLIVER BENNETT
Esse personagem literário não foi bem recebido no século 19, e até mesmo o tsar o considerava "desprezível". Hoje, o público o considera ainda mais repugnante.

Obra-prima de Mikhaíl Liérmontov, “O Herói do Nosso Tempo”, é um dos mais influentes e importantes romances russos. Ele é composto por cinco seções, todas girando em torno de Petchorin, personagem que é frequentemente visto como descendente literário de Evguêni Onéguin e Byron.

Ele é um dos personagens mais ambíguos da literatura mundial: mente, engana e manipula tudo para conseguir o que deseja – e quando consegue já não sabe mais se quer aquilo.

No livro, é mais frequente que as mulheres sejam vítimas de suas manipulações ou um prêmio que é metade desejado, metade ridicularizado. Petchorin é um misógino: “Compaixão,  aquela emoção à qual as mulheres cedem tão facilmente”, diz. Ou: “Não há nada mais paradoxal que a mente feminina” e “As mulheres só amam homens que não conhecem”.

Quando ele vê pela primeira vez a Princesa Mary, só comenta sobre sua aparência. Certamente, este não é um homem moderno iluminado.

‘Desestabilizar’ a mente feminina

A seção "Princesa Mary" mostra Pechorin entediado e inquieto em uma cidade termal. Para se divertir, ele começa a perseguir a princesa. Uma de suas táticas é hoje conhecida como "negging": o homem diz algo depreciativo à mulher para aumentar a necessidade dela de receber a aprovação do manipulador.

Depois de a princesa Mary cantar uma música em um chá da tarde, enquanto todo mundo a elogia, Petchorin diz, deliberadamente, “algo bem negligente para ela sobre sua voz”. Isto faz Mary “torcer o nariz” e depois fazer uma reverência “sarcasticamente”. Mas Petchorin vai ainda mais longe, e diz que gosta da música dela porque ela o faz dormir.

O episódio acontece após Petchorin dizer à Princesa que está muito a fim dela. Assim, ele conscientemente desestabiliza o pensamento dela. Como coloca a crítica feminista Jacqueline Rose: “O objetivo do assédio não é apenas controlar o corpo das mulheres, mas também invadir suas mentes. Ele carrega uma injunção mais sinistra e patética: 'Você vai pensar em mim'”.

Talvez isto não seja tão sinistro. Mary está intrigada e atraída por Petchorin. Isto pode ser visto como um flerte direto e reto. Mas Petchorin vai mais além.

Depois de brincar psicologicamente com ela na noite de um baile, ele se encontra sozinho com Mary: “apertei rapidamente sua pequena mão junto aos meus lábios”. Isto não é uma decisão apressada do momento, já que mais cedo ele diz: “Prometi a mim mesmo que não deixaria de beijar a mão dela naquela noite”.

Assim, esta é uma invasão premeditada ao corpo de Mary. Observe a sutil sugestão de sua impotência física aqui: “sua pequena mão”.

Aproveitando-se do momento para fazer contato físico

O comportamento de Petchorin vai além em sua interação seguinte com Mary. Eles andam a cavalo lado a lado nas montanhas para assistir ao pôr do sol.

Separada do resto do grupo, Mary sente-se desmaiar quando atravessa um riacho da montanha e desfalece em sua sela. Petchorin coloca o braço em volta da cintura dela e a tranquiliza. “Ela estava prestes a se soltar do meu braço, mas eu apertei seu corpo suave em um abraço ainda mais próximo”. Ele então a beija e ela estremece.

Petchorin é inteligente. Ele nunca faz um avanço físico não premeditado. Ele se aproveita das oportunidades para exercer poder sobre Mary e reivindicar seu corpo.

Por que ler o livro hoje?

Na época de publicação do romance, em 1840, os críticos viram Petchorin com um pé atrás. O próprio tsar Nicolau o classificou como "desprezível".

Sob o ponto de vista moderno, suas atitudes são consideradas abusivas. Liêrmontov inseriu tantos sentimentos ambíguos e um caráter tão esférico à obra que isto a torna uma experiência de leitura rica e complexa.

Não se veem ali apenas as alegrias de um homem arrogante. Liérmontov chama nossa atenção, sutilmente,  para as contradições inconscientes de Petchorin.

Ele critica Gruchnitski por seu papel, por querer ser um herói de romance e ver sua vida em termos literários: “Fui o personagem necessário do quinto ato”.

“Ele é realmente um parodista romântico”, escreve o crítico James Wood. Ele está preso dentro do ideal byroniano, mas constantemente se afastando dele.

Ele diz que não se importa com o que as pessoas pensam, mas passa o tempo tentando controlar seus pensamentos.

Liérmontov nos convida a ver essas contradições e inseguranças de um homem fraco e melancólico. Afinal, como escreve a filósofa Judith Butler, “o desempenho da masculinidade é sempre melancólico, porque aquele que o executa sabe que seu papel é superficial”.

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