“Você já assistiu o documentário Krokodil Tears, Sasha?”, meu cunhado me perguntou. “É sobre o consumo de drogas na Rússia. Pesadíssimo!”. “Não, nunca”, respondi. E logo que cheguei em casa, corri para procurar no Google. Estava me preparando emocionalmente para imagens terríveis. Assisti ao primeiro episódio, ao segundo, ao terceiro, ao quarto… Achei normal. Claro, bem pesado para quem não está acostumado com cenas de siringas e noias, mas nada diferente do que eu já vi.
Como assim, vocês provavelmente vão me perguntar? Não, nunca fui viciada...rs. Mas, sempre soube que a Rússia, e também a Ucrânia, são os países mais consumidores de heroína no mundo, assim como com os maiores índices de Aids na Europa. E não fiquei sabendo disso por revistas ou programas da TV. Vivenciei algumas situações bem trash relacionadas a droga enquanto ainda morava lá.
Minha família se mudou da Rússia para Ucrânia na década de 1990. Todos os países pós-soviéticos passavam por uma crise absurda naquela época. Muitas fábricas e bancos quebraram, deixando centenas pessoas desempregadas e sem grana. A ilusão de um país forte e unido estava desaparecendo. O clima de depressão estava no ar. Meus pais e os proletariados da União Soviética também perderam muita coisa. Pois é, eu nasci bem na época das piores mudanças.
Fonte: youtube.com
O bairro onde gente morava em Odessa se chamava Palermo, por causa da região conhecida pelas drogas na Itália. Lá, moravam varias famílias ciganas que preparavam drogas com flores de papoula, e não era uma surpresa encontrar uma siringa no chão de vez em quando. Mas, sabe o que é interessante? Meus pais nunca se sentiam inseguros morando lá. As pessoas que usavam drogas eram consideradas doentes e não representavam ameaça nenhuma para ninguém. Eu até me lembro brincando com as crianças (filhos de pais drogados e filhos de ciganos traficantes) na rua e me perdendo nos brejos de lá e nunca nunca nunca aconteceu nada. As únicas mortes que tivemos naquele bairro era de overdose de heroína ou de intoxicação por álcool. Mas, fora isso, ninguém se importava se a pessoa usava drogas ou não. Todos viviam pacificamente, e deixavam as crianças brincar fora de casa sem medo nenhum.
Lembro que uma vez eu estava brincando com uma amiguinha na casa do pai alcoólatra dela, para quem a minha avó fazia “companhia de garrafa” (como se fala na Rússia), e cai e acabei machucando a minha perna muito feio. Como a casa era muito suja, frequentada pelos alcoólatras e drogados do bairro, sem eletricidade, água e sem higiene básica, peguei uma infecção não identificada que não passava de jeito nenhum. A ferida crescia a cada dia mais, corroendo a pele em volta. Mas ainda bem que meus pais (desconfiados pra caramba), sem ajuda de médico nenhum, conseguiram me curar, jogando penicilina em pó na carne viva. Uma das lembranças mais horríveis daquela época! E porque eu estou contando isso? Porque, mesmo depois de quase perder a minha perna, meus pais me deixaram sair na rua de novo e brincar na sujeira do bairro. E, ainda bem, essa foi a única vez que realmente aconteceu algo tão grave. Depois disso, eu rolava no chão, pulava por cima do fogo, corria descalça e nada mais aconteceu de ruim comigo.
Olhando para trás eu posso falar pra vocês que a situação do povo do nosso bairro não era das melhores. Mas quem realmente vivia bem naquela época? Existiam pessoas que não se abalavam tanto com os acontecimentos políticos e sociais e seguiam a frente, como meus pais, e tinha gente que entrava na depressão e mergulhava na ilusão das drogas. Acredito que desse jeito era mais fácil de viver do que encarar a realidade que chegou distribuindo tapas na cara de todo mundo.
Fonte: youtube.com
Só que essa ilusão não durava para sempre. Vizinhos e pessoas que meus pais conheciam, morriam de Aids e overdose. Eu posso nomear pelo menos cinco pessoas que eu conhecia e que morreram assim, de repente. Um dia pareciam “bem” e no outro, já não existiam mais. Quando eu conto isso para meus amigos aqui no Brasil, todo mundo acha que eu exagero, que vivo no mundo dos livros do Gabriel Garcia Marques. E eu entendo porque é assim. Eles devem pensar que a menina educada de uma família boa, não podia ver tanta coisa desgraçada. Mas, fica muito difícil explicar para um brasileiro que é acostumado a viver dividido entre mil e uma classes sociais, que na Rússia, naquela época e até hoje, a maioria das pessoas pertencia a uma única classe. Claro que tinham pessoas um pouco mais ricas e um pouco mais pobres, mas nada se comparado aos abismos sociais do Brasil. E outra coisa, drogado ou não, todo mundo era alfabetizado e com uma educação razoavelmente boa. Justamente por isso, pessoas de todos os tipos, não importando a vocação, profissão ou interesses pessoais, moravam no mesmo bairro, iam aos mesmos supermercados, compravam a mesma vodca e deixavam filhos brincando juntos.
Junkie é uma palavra em inglês que descreve perfeitamente alguém perdido nas drogas e que vive num lugar que é difícil chamar de casa. E na maioria das vezes, no Brasil, essa descrição se iguala a descrição de uma pessoa pobre. A realidade dos ricos ou somente das pessoas que tem uma vida boa de classe média alta no Brasil é muito diferente e distante do mundo dos junkies. A maioria dos brasileiros de classe alta ou média alta nunca viram ninguém fumando crack, muito menos se injetando. Os mundos deles são separados por uma parede altíssima. E na Rússia, não é assim. Se você é viciado em drogas pesadas e está caído na rua, você não necessariamente é pobre. E se seus vizinhos injetam heroína na frente do supermercado local, isso não significa que você mora num bairro ruim. Na Rússia, todo mundo mora lado-a-lado, independente das escolhas da vida.
E eu vivi tudo isso. Sem achar chocante ou traumático. E justamente por causa dessas cenas, aprendi que a vida é cheia de escolhas. Algumas, que podem trazer prosperidade e crescimento pessoal e outras apenas um delírio momentâneo. Na minha adolescência, que passei em Londres, muitos dos meus amigos e colegas de faculdade usavam vários tipos de drogas, pela curiosidade mesmo. Mas eu nunca tive interesse nenhum. Uma cicatriz grande na minha perna esquerda trazia lembranças péssimas da infância. Mas, por incrível que pareça, foram elas que me serviram de lição.
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