Fantasia e humanidade no reino de Leskov

Retrato do Leskov feito pelo Repin

Retrato do Leskov feito pelo Repin

Um homem de coração puro que alimenta e acalenta duas órfãs indefesas. Um funcionário público com a missão de investigar desmandos na província. Um militar cuja carreira é arruinada pela canalhice de um proprietário de terras... Todos personagens de uma pequena galeria do reino ficcional de Nikolai Leskov.

Alguns anos atrás, orientada pelo professor e tradutor Noé Oliveira Policarpo Polli, elaborei um projeto de tradução dos contos de Nikolai Leskov (1831-1895) citados pelo crítico Walter Benjamin no artigo “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. A lista incluía mais de dez narrativas, de tamanhos e temas variados. O tempo foi passando e o projeto adquiriu outros contornos. Neste ano, saíram finalmente dois volumes de contos de Leskov, frutos daquela ideia inicial. São eles Homens interessantes e outras histórias, traduzido pelo professor Noé, e A fraude e outras histórias, traduzido por mim.

Traduzir Leskov foi uma grande aventura, uma viagem por um mundo ficcional bem diferente daqueles dos grandes nomes do século XIX já consagrados no Brasil. Na verdade, a obscuridade de Nikolai Leskov entre nós é fruto de certo isolamento que lhe foi imposto na própria pátria, como explica Noé Oliveira no início do seu posfácio a Homens interessantes... “Figura isolada, no meio literário, por motivos ideológicos e por características da sua escrita, como um herege entre pios ou um malicioso entre puros, era a combinação de um abjurador das ideias socialistas com um crente desiludido com a Igreja oficial; sem amigos nem entre os conservadores nem entre os progressistas, desagradava a ateus revolucionários e a ortodoxos monarquistas”.

Mas a grande literatura de Leskov sobreviveu a ataques de uns e de outros e chega ao século XXI com toda a robustez de uma obra-prima. Ela traz ao nosso mundo tecnológico o aprendizado que Leskov recebeu ao longo de uma vida simples, repleta de viagens pelo interior do país. Em 1857, aos 26 anos de idade, o escritor abandonou a carreira no funcionalismo público e passou três anos viajando pela Rússia como representante comercial da firma Scott & Wilkins, de que o seu tio era sócio. Nos trajetos dessa vida errante, Leskov aprendeu a ver o próprio país a partir de outros ângulos. Como ele próprio afirmou: “Era a escola da vida e não de livros. Nela havia material para um século de literatura”.

Capa da edição brasileira de Homens interessantes

A leitura dos treze contos que compõem os dois volumes recém-lançados comprova esta declaração. Quanto da Rússia, em sua singularidade, não existe em suas páginas! Em A fraude e outras histórias, são seis ambientes completamente diversos. O mundo dos velhos crentes, que, no século XVII, recusaram-se a aceitar as reformas litúrgicas da Igreja Ortodoxa Russa, em “Kótin, o provedor e Platonida”. A vida em São Petersburgo e a sua relação com a obscuridade do cotidiano provinciano, na história um tanto fantasmagórica de “Águia Branca”. A simplicidade e o primor da existência no interior da Rússia, no singelo “A voz da natureza”. Os modos aparentemente grosseiros e preconceituosos do dia a dia do exército russo em suas campanhas dentro e fora das fronteiras em “A fraude”. O universo particularmente rico de um lapidador de pedras que crê nos espíritos poderosos que as habitam, em “Alexandrita”. E a angústia da vida urbana de uma mãe e esposa sufocada pela vida conjugal em “A propósito da ‘Sonata a Kreutzer’”.

Vale a pena fazer essa viagem pelo reino de Nikolai Leskov.

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