Como Pútin virou marca

Foto: TASS

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O presidente da Rússia, Vladímir Pútin, chega aos sessenta anos de idade como um dos chefes de Estado mais polêmicos do mundo. Ele é glorificado e demonizado. Tanto na própria pátria quanto no exterior, cada vez mais, Pútin tem se transformado de homem de carne e osso em marca, em um esquema no qual cada um encontra o que quer.

Dois anos atrás a revista norte-americana Forbes colocou Vladímir Pútin em segundo lugar na classificação dos políticos mais influentes do mundo – depois de Barack Obama, mas antes do presidente da China, Hu Jintao. Em geral, isso é um disparate. Por força dos parâmetros objetivos de cada uma dessas nações, atualmente o dirigente da Rússia não poderia exercer maior influência em questões internacionais do que o líder da China.

 

No entanto, Pútin é avaliado separadamente do país que ele governa. E isso não é só mérito ou culpa dele. O presidente da Rússia simplesmente tem sido o porta-voz mais expressivo de certo estado de coisas no mundo, um símbolo – positivo para alguns, negativo para outros – da situação transitória e nebulosa em que se encontra todo o sistema internacional e os Estados que o integram.

 

Pútin chegou ao poder sob o lema da estabilidade na Rússia em um momento em que o mundo, depois das festas de comemoração do fim da guerra fria, vantajoso para o Ocidente, começava a perder os parafusos. Tinha início, com impetuosidade, uma época de indeterminação sobre o pano de fundo da dissolução da estrutura institucional habitual.

 

As tentativas febris do Ocidente de fortalecer o sistema mundial criado nos moldes ocidentais levou a estrutura a oscilar para todos os lados. Uma vez que essa estrutura é única e integrada como nunca antes, as consequências dos passos impensados de alguns se refletem em todos, sem exceção. A estabilização interna não condiz com a crescente desestabilização do lado de fora. Em outras palavras, Pútin ficou na contracorrente.

 

Ele é considerado por muitos no mundo como inimigo “modelar” do progresso, símbolo de pontos de vista ultrapassados e de abordagens fora de moda. O próprio presidente russo parece estar em estado de fúria plácida, mas com explosões periódicas, em resposta à política das principais potências, cujas ações dão a impressão de que elas agitam a situação internacional de propósito, abalando seus últimos pilares.

 

Em artigos e declarações públicas, ele transmite uma única ideia: o mundo é perigoso e imprevisível e as ações dos países poderosos apenas aprofundam todas as ameaças. Isso parece evidente, mas, por alguma razão, continuamente, as consequência de médio e longo prazo das guerras, invasões, ingerências e reformas surpreendem seus próprios iniciadores. A história mais recente oferece uma série de exemplos, do Irã à Líbia.

 

Pútin não está sozinho no combate a esse estado de coisas, mas acontece que justamente ele se coloca na vanguarda da reação. Em primeiro lugar, porque a Rússia, apesar do declínio pós-dissolução da URSS, continua sendo um dos países mais ativos, com ambições claras. Em segundo lugar, porque não se pode ignorar a opinião da Rússia, tendo em vista seu potencial de armas nucleares e de matérias-primas. Finalmente, por força das particularidades do caráter do próprio presidente: ele se caracteriza por um nível de franqueza e sinceridade incomum entre políticos.

 

Por um lado, muitos acreditam que Pútin é um ardiloso estrategista, conduzido por um “grande propósito”, isto é, uma bem-pensada expansão, a recuperação de um império, o fortalecimento do poder vertical e o retorno da URSS. E isso dá à imagem do presidente da Rússia uma aura complementar de grande poder. Por outro lado, o próprio Pútin parece não acreditar em estratégias.

 

O presidente da Rússia é reacionário no sentido de que prefere a reação, a resposta a todos os outros tipos de ação política. Agir apenas em resposta a impulsos enviados de fora ou de dentro, sabendo com exatidão a fonte e o caráter dos desafios, permite que a reação seja mais precisa e certeira.

 

A reação em seu outro sentido, de repudiar mudanças, inicialmente não era característica de Pútin. Ela tem sido adquirida à medida que ele chega à conclusão de que tudo o que é novo, por algum motivo, piora a situação.

 

A crescente turbulência externa é o que mais preocupa Pútin, antes de tudo porque repercute nas manifestações internas de instabilidade, dando-lhes força. Como muitos russos conservadores que o antecederam, ele repete com frequência que o país precisa de tempo para ter um desenvolvimento estável, sólido e orientado, que ainda é cedo para soltar as rédeas da liberalidade democrática.

 

Nos últimos anos, recuperamos a carcaça estatal destruída após a ruína da URSS, na década de 1990; agora é preciso fortalecer o Estado, é preciso tempo para “terminar a construção”, disse Pútin em fevereiro, num encontro pré-eleitoral. A escolha da palavra russa é curiosa – ele não fala de perestroika (reconstrução), termo usado por Mikhail Gorbatchov e considerado por muitos na Rússia como sinônimo de catástrofe, mas dostroika [do verbo dostroit, terminar de construir], com o mesmo radical, porém com o sentido de levar a construção até o fim.

 

Pútin entende que os protestos com que a sociedade que acabara de despertar recebeu a sua volta ao poder são não apenas incitação do Ocidente (embora ele próprio também acredite nisso, é claro), mas a comprovação de que há mudanças sociais em andamento.

 

A história da Rússia tem mostrado, invariavelmente, que os conservadores nunca tiveram o tempo de que diziam precisar. Algo acontecia e seus esforços, até mesmo os corretos e construtivos, eram varridos pela pressão das mudanças. Mudanças nem sempre melhoram a situação, mas, no momento em que ocorrem, ninguém pensa nisso.

 

Ao voltar ao posto máximo do Estado, Pútin não levou consigo receitas para solução dos problemas surgidos, mas retornou com um aguçado senso do perigo, da fragilidade de tudo o que o cerca. É difícil acusar Pútin de falta de estratégia, arma que hoje ninguém tem – neste mundo imprevisível a estratégia praticamente deixou de fazer sentido.

 

A experiência da Europa mostra que construções aparentemente bem-pensadas e muito sólidas podem ruir como casinhas de papelão. Na qualidade de político realista e conservador, Pútin avalia toda a complexidade do que está acontecendo com muita sobriedade, mas não encontra respostas para os desafios que se multiplicam cada dia mais.

 

Fiódor Lukianov é redator-chefe da revista Russia in Global Affairs.

 

Versão reduzida do artigo originalmente publicado pelo jornal Kommersant

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