Em 2011, aceitei com prazer o trabalho de traduzir o livro Imagens artísticas do tempo e do espaço na literatura russa do século XIX, do crítico e escritor russo Andrêi Kofman. No mês passado, quando eu estava começando a tradução do último capítulo, “Cronologia da literatura russa clássica e do Século de Prata (1800-1917)”, a editora Marina Darmaros me convidou para escrever um blog sobre literatura russa. Eu precisava definir o conteúdo e fazer o primeiro post. A ideia parecia boa e inspiradora; pedi dois dias para pensar. Passaram-se duas semanas áridas, sem nenhum sinal da definição do conteúdo nem da redação do post.
No final, o texto de Kofman me inspirou. Na “Cronologia”, ele faz um apanhado dos escritores, obras, trabalhos filosóficos, críticas, revistas literárias e associações artísticas que afetaram a atmosfera intelectual do século XIX na Rússia e ressalta a importância do ambiente literário geral para o surgimento dos grandes escritores. Pronto! Ali estava o conteúdo: a literatura russa e todo o contexto que envolve o seu florescimento. Faltava apenas acrescentar a tradução, sem a qual os “monstros” russos, como dizia Graciliano Ramos, seriam inacessíveis à grande maioria dos leitores brasileiros.
Por que Karamzin?
Nikolai Mikháilovitch Karamzin (1766-1826).
Sempre é hora de falar em nomes importantes da literatura russa pouco conhecidos no Brasil. Entre nós, quem conhece Nikolai Karamzin? Provavelmente quem estuda língua, literatura e história russas e também quem leu a Nova Antologia do Conto Russo, lançada no ano passado pela Editora 34.
Pobre Liza (1792), de Karamzin, abre os 40 contos selecionados. Na tradução de Natalia Marcelli de Carvalho e Fátima Bianchi (p. 23-37), está a expressão máxima do sentimentalismo russo, movimento literário idealista e sonhador, com ênfase na subjetividade, surgido em resposta aos rigores racionalistas da tradição clássica.
A história é contada por um habitante de Moscou que passeia pelos arredores da cidade e sempre se sente atraído pelos muros do mosteiro de Símonov por causa das “recordações do lamentável destino de Liza, da pobre Liza”. É com exclamações e ternura que ele introduz o relato: “Ah! Gosto das coisas que me tocam o coração e me fazem derramar lágrimas de doce pesar!”
A atmosfera sentimental e trágica do conto foi belamente representada no desenho animado mudo de mesmo nome, de 1978, dirigido por Ideia Garanina (1937-2010), especialista na técnica de animação com bonecos, e musicado por Aleksêi Ribnikov (1945-), compositor premiado, responsável pela trilha sonora de mais de cem filmes e desenhos animados. Vale a pena assistir.
História e literatura
Sempre é hora de falar em nomes importantes da literatura russa que nos fazem lembrar outros nomes importantes da literatura russa.
Karamzin foi fundamental para a formação dos escritores e pensadores russos do século XIX e vários clássicos fazem referência às suas obras. É o caso, por exemplo, de Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski (1821-1881) em Gente pobre (1846).
Além de escritor, Karamzin foi historiador oficial do Império Russo de 1803 até o final da vida. Com remuneração regular do governo, dedicou-se à História do Estado Russo e publicou os primeiros oito volumes em 1818. O projeto foi interrompido com sua morte, no décimo segundo volume.
Entretanto, os princípios desse trabalho, que sistematizou pela primeira vez a história da terra russa em um quadro amplo, não escaparam a críticas. Em 1869, Mikhail Evgráfovitch Saltykov-Schedrin (1826-1889) publicou História de uma cidade – uma crítica às “verdades” históricas. A comparação de trechos dos dois autores deixa clara a diferença entre o relato oficial e a literatura satírica.
Esta é a dedicatória de Karamzin ao imperador Alexandre I (1777-1825), que governou a Rússia de 1801 a 1825: “Estai vigilante, monarca querido. [...] a história registra os feitos dos magnânimos tsares e, na posteridade mais distante, inspirará amor à vossa santa memória. Recebei com benevolência este livro, demonstração de tudo isso. A história do povo pertence ao tsar.”
Este é um trecho do primeiro capítulo de História de uma cidade, em que o editor ficcional explica por que decidiu publicar os “Anais de Tolóvia”: “O conteúdo dos ‘Anais’ é bastante uniforme: esgota-se quase exclusivamente com a biografia dos governantes que, num período de pouco menos de um século, dominaram os destinos de Tolóvia, e com a descrição de suas notabilíssimas ações, a saber: viagens rápidas nos cavalos dos correios, cobrança enérgica de impostos atrasados, marchas contra os cidadãos, arranjo e desarranjo de calçadas, imposição de tributos a comerciantes etc.”
Na próxima semana: o cárcere russo nos relatos de Dostoiévski, Tchékhov, Soljenítsin e Chalámov
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