“Quando muro caiu, eu assistia ao ‘Jornal Nacional’ russo e ninguém lá se impressionou”

Capa do livro Os russos. Foto: Divulgação

Capa do livro Os russos. Foto: Divulgação

Professor do departamento de história da Universidade de São Paulo e autor de diversos livros sobre a Rússia, Angelo Segrillo participará de encontro na quinta-feira (16) durante a Bienal do Livro. No evento, ele falará de seu mais recente lançamento, “Os Russos”, em que faz panorama da história do país e de seus principais personagens.

No final da década de 1980, a bordo de um trem, o historiador brasileiro Angelo Segrillo, percorreu a União Soviética de “alto a baixo”, da região do Mar Báltico às antigas repúblicas da Ásia Central.

Segrillo viveu na Rússia entre o final daquela década e o início da de 1990, período em que completou seu mestrado no Instituto Puchkin de Moscou.

Em “Os Russos”, Segrillo faz um panorama histórico da Rússia, mas acrescenta muitas das suas impressões sobre o povo, os costumes e sua cultura a partir de suas experiências de viagem pelo país.

Na quinta-feira (16), o autor participará do painel Viagens de Conhecimento na Bienal do Livro de São Paulo, em que falará desses encontros com os russos nos mais diferentes pontos do país.

A mesa terá mediação do apresentador Zeca Camargo e também contará com a participação do escritor norte-americano de livros de viagem Thomas Kohnstamm.

Professor do departamento de história da Universidade de São Paulo e autor de diversos livros sobre a Rússia, Angelo Segrillo. Foto: Arquivo pessoal

Segrillo falou com exclusividade à Gazeta Russa:

De onde vem seu interesse pela Rússia e por estudar o país a fundo?

Sempre gostei de estudar línguas. Além disso, a cultura russa me interessava muito. Desde os escritores, como Dostoiévski, Tolstói, Gógol, Púchkin, até outros aspectos da cultura clássica russa.

A questão política também me interessava. Eu queria entender como funcionava a questão do socialismo, depois a instalação da perestroika e a possibilidade de abertura. Nessa época se falava muito da União Soviética, se essa reforma poderia ou não acontecer. 

Cheguei lá em 1989, ano da queda do muro de Berlim e mais ou menos na metade da perestroika, quando tudo isso estava fervilhando.

O sr. tem um livro que trata exclusivamente da época da perestroika...

Logo que eu voltei ao Brasil, lancei “Um brasileiro na perestroika”, que traz minhas lembranças desse período. É um livro de memórias, traz minhas impressões daquele momento e do que vivi.

Logo no início de “Os Russos” o sr. explica a diferença entre o ‘rússki’ (o russo étnico, filho de pai ou mãe russo) e o ‘rossianin’ (cidadão da Rússia por nascimento ou vivência). Por que isso é tão importante para entender o povo russo?

Essa é uma condição básica. A nacionalidade pode ser determinada pelo jus soli o direito do solo, como acontece no Brasil, ou pelo jus sanguinis, ou seja, sua nacionalidade não tem nada a ver com o local em que você nasce, ela é a do seu pai ou da sua mãe.

Aqui no Brasil, a maioria das pessoas nem se dá conta de que existe essa diferenciação, mas quando você olha para os países dos chamados jus sanguinis, com a Rússia, cria-se uma realidade completamente diferente.

Existem mais de cem nacionalidades na Rússia, o que cria uma riqueza cultural imensa, mas uma possibilidade de problemas maior também. O que chamamos de conflitos étnicos, por exemplo, lá se transformam em conflitos nacionais.

Como foi seu descobrimento do país e suas viagens pelo interior russo?

 

Foi meio uma “Ilha da Fantasia” pra mim. Quando cheguei lá, em 1989, estava no meio da perestroika. A URSS já era bem diferente do que era em 1985.

Era barato viajar. No cambio oficial, o rublo valia até mais do que o dólar. Mas no câmbio negro, um dólar valia doze rublos. Com isso, eu viajei de alto a baixo a URRS, por todas as antigas repúblicas: Ucrânia, Bielorrússia, Lituânia, Estônia.

As viagens foram muito interessantes porque você conhece culturas diferentes. Não é como você ir de São Paulo ao Paraná ou ao Rio de Janeiro. As repúblicas da Ásia Central, por exemplo, Cazaquistão, eram completamente diferente das do Báltico.

E nesses lugares mais distantes as pessoas tinham ideia das mudanças que estavam ocorrendo naquela época?

Todo mundo acompanhava pela televisão. O nível de educação dos soviéticos era alto. Eu me lembro de um episódio no dia da queda do Muro de Berlim. Eu estava assistindo ao que seria o “Jornal Nacional” russo com outras pessoas e ninguém pareceu muito impressionado, parecia algo distante.

A questão econômica estava tão forte, as pessoas estavam tão preocupadas com a própria sobrevivência que aquilo parecia uma coisa muito externa. Mas o que acontecia dentro da Rússia, como a tentativa de golpe contra Gorbatchov, tudo isso era vivido muito intensamente.

E o que o mais chamou sua atenção durante a vivência na Rússia?

 

Acompanhar o processo de desintegração da União Soviética, a formação da nova Rússia nos anos 1990 e a consolidação nos anos 2000 foi muito interessante.

Mas no campo pessoal, a questão da cultura foi muito forte. O jus sanguinis não se refere ao sangue biológico, mas à preservação da cultura. Isso me marcou. E como a cultura russa é muito diferente da nossa, é ainda mais forte.

Outra questão interessante que o sr. aborda no livro é a questão da força dos laços familiares na Rússia. Isso é algo que aproxima o país do Brasil?

Exato. Fiz minha graduação nos Estados Unidos e o mestrado na União Soviética. Os americanos seguem um padrão anglo-saxão de individualismo muito forte, os laços familiares são diferentes.

Na Rússia, esse núcleo familiar forte tem raízes históricas ainda da época dos tsares. Antigamente, existiam as “mir”, que entre outros significados, quer dizer comuna rural. Os camponeses russos não praticavam a agricultura individual, eles produziam coletivamente nas “mir”. Cada produtor era parte de uma comuna rural, que possuía determinado espaço.

Mais tarde, com o comunismo, essa força do núcleo familiar também era uma forma  de reação. Muitas vezes, as pessoas tinham uma espécie vida dupla, falavam uma coisa em público, mas em casa realmente se abriam. O ambiente familiar era o local onde as pessoas podiam se expressar mais livremente.

E quais outros aspectos aproximam Brasil e Rússia?

 

Nossos povos, os russos étnicos e os brasileiros, são o que eu chamo de maximalistas. Ou somos os melhores do mundo, o país do futuro, onde plantando tudo dá, ou nada dá certo. Os russo também são muito assim. A falta de um meio termo nos aproxima.

É interessante ressaltar esses pontos em comum porque, em geral, os povos são muito diferentes. O russo é mais introvertido, dado à leitura, menos de fala.

Há laços políticos também, os Brics...

Acho que existe a vontade de se construir um mundo mais multipolar e contrapor um pouco aquela unipolaridade pós-Guerra Fria.  

Quais as principais mudanças ocorridas na Rússia desde o fim da União Soviética na sua visão?

 

Nos anos 1990, houve uma reação muito forte contra o antigo regime. Mas, ao mesmo tempo, a virada de Boris Iéltsin para o Ocidente veio em um momento de crise econômica muito forte. Por isso, muitos russos associaram o período Iéltsin com essa desordem.

Nos anos 2000, com Vladímir Pútin, houve uma melhora econômica e certa recentralização, ao invés de uma busca tão frenética de alinhamento com o Ocidente.

Ainda se fala dos excessos da União Soviética, mas não se olha para o período como se fosse algo que devesse ser apagado. 

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