Budismo renasce em antigo reduto

Foto: Anna Nemtsova

Foto: Anna Nemtsova

Um terço de sua população foi exilada durante o terror stalinista, mas enquanto a Kalmíkia reconstrói templos e organiza eventos globais, problema social continua.

Foto: Anna Nemtsova

“Que todos os nossos desejos se tornem realidade, todas as criaturas vivas se libertem do sofrimento, do perigo das doenças e da tristeza! Que a paz e a felicidade governem sobre a Terra!” Mais de dois mil budistas cantam o mantra, ajoelhando-se sobre esteiras em um templo budista na cidade de Elista, capital da República da Kalmíkia. No sul da Rússia, a região é uma das três tradicionalmente budistas do país.

Exilados e

perseguidos  

Esteve presente à celebração um grupo de 30 monges tibetanos do mosteiro de Gyudmed, nomeados pelo líder Dalai Lama apesar das objeções da China – que o acusa de instigar o separatismo do Tibet.

Os convidados abençoaram o principal templo da região e as 17 esculturas de cientistas budistas tibetanos encontradas no santuário.

Eles repetem palavras de oração seguindo o líder budista kalmuk, Telo Tulku Rinpotche. Por fim, o grupo entra em profunda meditação e a praça fica em silêncio.

Quando a noite cai, milhares de velas são acesas. Os monges budistas em visita à cidade vêm do Tibete, da Tailândia e dos Estados Unidos, bem como das repúblicas russas budistas da Buriátia e de Tuva. Eles abençoam os fiéis ali reunidos, provenientes de todas as regiões da Kalmíkia e do sul da Rússia.

Uma oferenda de luz para Buda, a cerimônia foi introduzida aos budistas russos pela primeira vez como um evento simbólico de abertura do fórum internacional “Budismo: Filosofia da Não Violência e da Compaixão”, realizado no mês passado na capital Elista.

Situação social

Atualmente, a Kalmíkia é a segunda região mais pobre da Rússia, ultrapassada somente da Inguchétia. A taxa de desemprego de 15% na área é o dobro da média nacional.

Com população de mais de 
300 mil habitantes, a República da Kalmíkia optou por restaurar a filosofia e a cultura tradicionais do budismo tibetano. A religião foi adotada por seus antecessores, as tribos oirates da Mongólia, no século 13, e importada para o Império Russo quando os oirates migraram para a região em 1609.

Mas a religião foi violentamente reprimida, com relíquias e templos destruídos durante as repressões de Stálin na década de 1930 (veja ao lado). Toda a população indígena da Kalmíkia foi exilada por 17 anos na Sibéria.

Localização dos maiores comunidades budistas da Rússia

Os olhos de Evdokia Kutsáieva, 84, se enchem de lágrimas quando se recorda das deportações da época de Stálin. “Numa noite em outubro de 1943, enfiaram toda a população da república em vagões de trem sujos e nos mandaram para a Sibéria. Milhares de pessoas morreram no caminho. Lembro-me das pilhas de corpos espalhadas pelas plataformas”, conta.

Até o fim da década de 1980, era perigoso para Kutsáieva e sua família acenderem velas para Buda, e ainda mais enviá-las aos céus presas em balões. Para sua alegria, porém, na última década foram construídos na Kalmíquia 30 novos templos e 55 casas de orações budistas.

“É tudo que ainda resta para deixar o povo feliz e em paz hoje em dia”, diz o empresário local Aleksandr Nemeiev. Ele aponta para a estátua dourada de Buda no templo que construiu para sua vila, Uldutchini, dois anos atrás.

Nemeiev investiu cerca de 
R$ 73 mil na empreitada. Em um fim de semana recente, cerca de cem budistas compareceram ao local para orar com os monges tibetanos que visitavam a república.

 

Dedicação religiosa

Mas nem todos no vilarejo participaram da cerimônia. “O templo não me dá comida para alimentar meus dois filhos”, diz Khondor, um eletricista viúvo de 47 anos que não quis relevar seu sobrenome.

Dados

do budismo 

na Rússia

1  O budismo é, por tradição, a principal religião nas repúblicas da Buriátia, Kalmíkia, Tuva e Altai, no território de Zabaikálski e na província de Irkutsk (todas na Sibéria, exceto a Kalmíkia). Sua filosofia foi introduzida na Rússia no século 17. Em 1764, foi aceita como umas das religiões oficiais do país.

Ho je, existem aproximadamente 1,4 milhão de budistas na Rússia, de acordo com o censo mais recente. Eles representam 1% da população do país.

3  Em 1979, o Dalai Lama fez sua primeira visita à União Soviética. A partir de 1994, ele foi recebido com entusiasmo em visitas às três repúblicas budistas da Rússia. Entretanto, com o estreitamento das relações comerciais entre Moscou e China, a Rússia passou a impedir a entrada do líder no país desde 2004 por meio da recusa de pedidos de visto.

Ele mostra a modesta casa de dois quartos que divide com dois filhos adolescentes e afirma ter orgulho de ser uma das duas únicas pessoas que têm emprego de período integral em Uldutchini. “Lidar com as adversidades é nossa tradição”, afirma.

Os filhos de Khondor, Aveiach, 14, e Nagaila, 13, dizem que seu sonho é deixar a Kalmíkia para estudar em Moscou ou São Petersburgo. O pai não se incomoda com os planos deles, já que não vê perspectivas na república.

Os líderes budistas kalmuks (naturais da Kalmíkia) dizem que seus esforços atualmente não se resumem à reconstrução dos templos, ação apoiada pelo governo, mas também ao renascimento da cultura e da mentalidade budista kalmuk, ao lado de outras característcas humanas básicas e seculares como compaixão, amor, bondade e perdão.

“De certo modo, somos um centro psicológico e espiritual que dá às pessoas esperança, apoio moral e orientação espiritual”, diz o líder budista Telo Tulku Rinpotche.

Kirsan Iliumjinov, ex-presidente da República da Kalmíkia que deixou o cargo em 2010, esteve nos eventos religiosos recentes. O polêmico Iliumjinov disse que os ensinamentos do budismo apoiados por ele durante seu governo evitaram que a Kalmíkia se envolvesse nas guerras separatistas das repúblicas vizinhas do Cáucaso do Norte.

“A filosofia de paz e benevolência do budismo é a solução para o povo kalmuk em meio ao caos e à cruel realidade em que vivem”, diz.

Os budistas da Kalmíkia foram duramente reprimidos na década de 1930, durante o terror stalinista. Todas as religiões foram perseguidas pelas políticas soviéticas, e o budismo foi praticamente extinto.

Até 1941, todos os mosteiros e templos budistas haviam sido fechados ou destruídos, e os membros mais importantes da religião foram executados ou desapareceram em campos de concentração. Uma segunda onda de repressões se deu em 1943, quando um terço dos habitantes da Kalmíkia foi expulso de suas casas e enviado para a Sibéria.

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