Rússia vai às eleições com novas canções satíricas

Face às próximas eleições legislativas, a sátira musical russa deixou de lado as construções metafóricas sofisticadas e aponta nomes concretos. No passado, isso aconteceu poucas vezes.

A corrupção entre agentes do Estado, os “jogos malabares” dos manda-chuvas, o puxa-saquismo na função pública, os crimes entre titulares de altos cargos públicos e a inércia das massas populares são alguns dos fenômenos sociais da Rússia de hoje que se tornam cada vez mais alvo de críticas em musicais de ídolos do rock e de jovens cantores de hip-hop, rappers e outros artistas independentes. O espírito criativo se tornou especialmente ativo com a aproximação das eleições parlamentares na Rússia, previstas para o dia 4 de dezembro.

Uma das obras pré-eleitorais mais notáveis foi feita pelo veterano do rock russo Andrêi Makarévich. Composta no estilo dos bardos e intitulada “Kholuévo” (a canção leva seu nome da palavra “kholúi”, que significa em russo “puxa-saco”, “bajulador”), a canção surgiu no ano passado e relata uma cidade fictícia, cujas autoridades se preparam para receber a visita de Vladímir Pútin e mandam limpar e pintar toda a cidade, inclusive a grama e o céu. Mas trabalharam em vão, pois Pútin não chegou. A canção foi colocada na internet e teve grande sucesso em outubro, logo depois do anúncio sobre a troca de cargos entre Medvedev e Pútin.

“Kholuévo”  de Andrêi Makarévich

“Não me agrada o que se passa hoje em meu país. Já nos disseram quem será nosso próximo presidente. Mas o problema não está em Pútin, o problema está na sensação de que estão nos tirando aquilo que ainda resta de nosso direito de escolher”, disse Andrêi Makarévich, esclarecendo que sua canção não é sobre Pútin, mas sobre o “puxa-saquismo radicado nas regiões”.

O surto anterior de críticas entre os músicos russos remonta ao início da Perestroika, em meados dos anos 1980. Mas naquela época, os roqueiros e cantores russos se expressavam mais metaforica e alegoricamente do que agora. Na verdade, era mais uma poesia cívica do que uma sátira.


“Viragem” da banda Máquina do Tempo, de Andrêi Makarévich. Concerto na Praça Vermelha, 1994.

Outro ídolo do rock russo, Iúri Chevtchúk, se dirigiu, em 1982, em sua canção “Não atire!”, aos soldados enviados a uma região conflagrada fictícia, pedindo que eles não usassem as armas. Embora o público soviético acolhesse essa composição como reação do roqueiro à campanha militar da URSS no Afeganistão, ela estava de acordo com a ideologia anti-militarista oificial da União Soviética. O mesmo simbolismo metafórico caracteriza a canção “Viragem” da banda Máquina do Tempo, de Andrêi Makarévich. Suas palavras-chave, “todo o mundo está com medo de mudanças”, foram acolhidas pelo povo sem equívocos, embora, formalmente, não passassem de uma observação filosófica em relação aos hipotéticos conservadores. Em seguida, chegou um período de hinos imbuídos de protestos sociais e cantados em coro pelos roqueiros em grandes estádios. Eram relevantes, mas não tinham ironia.

Nesse contexto, é preciso lembrar nomes como Vladímir Vissótski e Aleksandr Gálich, cantores soviéticos famosos por ridicularizar impeidosamente as realidades políticas e sociais da sociedade soviética. Todavia, sua ironia e sarcasmo tinham como alvo fenômenos em geral e não personagens concretos: “Quantas vezes ficamos calados, consentindo e jamais  protestando...”


Iúri Chevtchúk, “Não atire!”, 1982. Video do concerto de 2003. 

Hoje, os autores de canções satíricas preferem apontar diretamente para  personagens e acontecimentos concretos e não metaforizar fenômenos políticos e sociais negativos.  A música do rapper Ivan Aleksêiev sobre o trágico acidente na avenida Léninski Prospékt, em Moscou, envolvendo a limusine do vice-presidente da empresa petrolífera Lukoil, Anatóli Barkóv, começa com a frase: “Permissão para me apresentar: meu nome é Anatóli Barkóv...” Em seguida, vem o monólogo em nome dessa pessoa completamante correspondente ao credo dos atuais manda-chuvas da vida russa: “Sou personagem de um outro plano, criatura da ordem mais alta, não conheço problemas impossíveis de resolver com suborno...”

Uma canção ou poema envolvendo personagens e acontecimentos familiares tem sempre maior efeito. A canção acima não se destaca, certamente, por refinadas figuras poéticas, mas é mordaz: fator determinante de uma obra satírica.

A já mencionada “Kholuévo” utiliza a mesma técnica. Andrêi Makarévich não só relata o alvoroço entre as autoridades provinciais causado pela notícia sobre a eventual visita de um grande chefe de Moscou como também informa que “Pútin chega a Kholuévo”, usurpando assim as funções dos telejornais dos canais de TV centrais onde a crítica aos dirigentes máximos do Estado e aos acontecimentos a eles associados é um tabu.

Um outro hit da web russa, “Nosso manicômio vota em Pútin”, deixa os espectadores decidirem se devem se juntar ou não aos pacientes desse hospital de saúde mental e, tal como o clipe de “Kholuévo”, não foi além da esfera de ação da internet.


Ivan Aleksêiev, 'Mercedes S666''

Essa característica da sátira política moderna russa é eficaz e, ao mesmo tempo, um pouco paradoxal. Nos períodos de grandes choques revolucionários de nossa história, quando todas as barreiras da censura caíam e os cidadãos tinham a possibilidade de se expressar livremente, os poetas e músicos cantavam não tanto sobre os líderes derrubados e seus “lacaios”, mas sobre as mudanças negativas ocorridas em cada um de nós e nossa degeneração interna.

Agora que existem certos tabus ideológicos e proibições tácitas e se veicula o tema da apatia da sociedade, começaram a surgir canções mais críticas e acusatórias, semelhantes às declarações de protesto típicas de comícios políticos. Sua popularidade se mede em acessos na internet e está crescendo. Possivelmente, estamos assistindo ao surgimento de uma nova corrente musical que dará início a uma nova época. Enquanto isso, têm surgido na Rússia tantas canções satíricas que poderíamos organizar um festival temático que, por seu turno, poderia se transformar em algo semelhante à praça Maidão, em Kiev, berço da chamada  Revolução Laranja na Ucrânia. Mas eu preferiria que ele se transformasse em algo semelhante ao Hyde Park, em Londres.



Mikhail Margólis - colunista de música do jornal “Izvéstia”

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