"Gaddafi foi o último representante de uma época que acabou para sempre"

Foto: Reuters

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O ex-líder líbio Muammar Gaddafi morreu no dia 20 de outubro durante um tiroteio entre seus partidários e soldados do Conselho Nacional de Transição, em Sirte. Anteriormente, foi relatado que Gaddafi havia sido detido na região de Sirte. Ao receber a notícia da prisão de Gaddafi, Dmítri Medvedev chamou-a de “perfeita”. Representantes da maior parte dos países do mundo, comentando o fato, não escondiam sua satisfação em relação à notícia vinda da Líbia e manifestaram a esperança de que o país rume a uma nova vida. Para mostrar o quão justificadas são essas esperanças, o ex-embaixador da Tunísia e da Líbia, diretor de relações externas do Fundo de Apoio à cultura, ciência e educação islâmica e diretor do Centro de Parceria das Civilizações, Veniamin Popov, concedeu uma entrevista ao jornal Vzgliád.

Vzgliád: Os defensores russos de Muammar Gaddafi confirmam que na Líbia socialista de Jamahiria o PIB per capita atingiu até 14 mil dólares, não havia gastos de serviços públicos, davam um incentivo financeiro aos recém-casados, distribuíam empréstimos sem juros, parte dos remédios era concedida gratuitamente e o estado ajudava jovens a comprar apartamentos para as famílias. Isso tudo é verdade?

Veniamin Popov: Realmente, para o povo, havia uma série de benefícios e muitos tinham um alto nível de renda. O que explica porque Gaddafi estava no poder há 42 anos. O principal do regime de Gaddafi era que ele se chamava de líder da revolução líbia. Ele não ocupava o cargo oficial. Quando era necessário dar uma resposta à sociedade, mas ele não queria, dava a palavra ao primeiro-ministro, pois ele era a "face não oficial". Mas, na verdade, ele tinha tudo nas mãos. Essa experiência existe desde 1977. Além dos benefícios sociais, Gaddafi enviou um monte de dinheiro para atividades terroristas e subversivas.


Vzgliád: O assassinato de Muammar Gaddafi é um momento divisor de águas para o país, como vai ser de agora em diante?


VP: A situação será muito complicada. Alguns focos de resistência continuam do mesmo jeito. As resistências não serão tão organizadas, mas as ações subversivas vão continuar. No entanto, o mais importante é como organizar todo o país novamente. Deve haver algum tipo de núcleo unificador. Esse país é composto de várias peças e das mais diversas tribos, que ainda são muito influentes até hoje. Quando o poder passou para as mãos do Conselho Nacional de Transição (CNT), eles não conseguiram criar um governo. O motivo é que cada cidade exigiu ter mais postos nos ministérios que outras.

As milícias mais organizadas são a dos islamistas. Eles são a única força que, na ausência do regime, pode tomar algum tipo de decisão. Eles têm armas. Por isso ainda não se sabe como a situação vai se desenrolar no futuro. Agora, os relacionamentos entre os próprios rebeldes armados começam a se esclarecer. Não é fácil trazer tudo a um denominador comum e apresentar uma ideia que uniria todos os líbios. Em primeiro lugar, é preciso construir uma vida pacífica, mas isso é difícil: há muitos mortos, e isso significa vingança. Além de muitas ruínas.

Vzgliád: Você ficou de algum modo sensibilizado quando soube da morte de Muammar Gaddafi, com quem teve de negociar mais de uma vez?


VP: Há algo de sinistro quando se mostra um homem assassinado e todo o mundo fica feliz. Talvez a história depois coloque tudo em seu devido lugar. Eu entendo a mentalidade das pessoas que lutaram e morreram lá. Mas, junto a isso, mostrar o cadáver o tempo todo na televisão não produz uma impressão das mais favoráveis. Depois de algum tempo, a imagem de hoje vai mudar. Então nós teremos a realidade de forma objetiva. Como disse um dos meus amigos líbios, ainda não está claro como a situação se desdobrará finalmente na Líbia e quem realmente ficará no poder. Para isso acontecer vai levar algum tempo.


Não podemos excluir o fato de que, quando for realizada uma eleição em maio na França e os socialistas chegarem ao poder, eles ainda estarão envolvidos na investigação, porque Paris tem feito parte nessa guerra. Do mesmo modo que foi relatado que, primeiro, aviões da Otan bombardearam os dois carros com Gaddafi, e depois houve o tiroteio.

Talvez fosse novamente uma operação conjunta. Não é por acaso que a secretária de Estado dos Estados Unidos Hillary Clinton disse que Gaddafi ou foi morto ou capturado. Ela parecia saber alguma coisa, tinha alguma informação. Os detalhes vazaram depois.


Vzgliád: Especialistas acreditam que após a eliminação de Gaddafi não pode ser descartada uma completa desintegração do país.

VP: Eu não gostaria disso. Este cenário é muito sombrio. Entre os líbios há muita gente sensata. Mas uma relação transparente pode levar realmente muito tempo, quem é o dono real, e quem pode unir o país. Hoje, essa força não é visível. Há demasiados interesses tribais, cidades separadas, há um perigo real. Mas a própria vida pode obstruir uma escolha em favor de que se reconstrua a economia arruinada mais rápido e se estabeleça uma situação normal. Mas certamente haverá confronto. É o destino de toda revolução. Começar uma revolução, assim como a guerra, é sempre fácil, mas o que acontece em seguida é sempre difícil dizer.


Vzgliád: Na sua opinião, por que Gaddafi, embora ele tivesse a chance, não deixou o país, mas preferiu aceitar a luta?


VP: Ele mesmo disse que não iria deixar a Líbia. Apesar da excentricidade, ele tinha o seu próprio sistema de valores e atitudes. E depois, ele foi por 40 anos proprietário de um estado muito rico, seu líder absoluto. Ele podia fazer tudo o que queria. Além disso, ele era um político muito adaptável e tomou medidas que deveriam impedir que ele tomasse o destino de Saddam Hussein. Mas todo político tem o seu Waterloo.


Vzgliád: Qual a probabilidade de que, após sua morte, Gaddafi se torne um mártir aos olhos dos habitantes do país?

VP: O modo como ele será lembrado pelos líbios vai depender do que aguarda o país no futuro. Se a vida for pior, então Gaddafi torna-se um mártir e um herói. Se a oposição conseguir criar um estado democrático, então o coronel, aos olhos dos habitantes do país, continuará a ser um ditador.


A Líbia como um estado só existiu na presença de Gaddafi, ele conseguiu unir o país de uma maneira incompreensível para nós. Mas o mundo mudou, a era da globalização chegou. Os jovens querem agora participar na direção do governo, e não somente ouvir o que seus líderes têm a dizer. A época dos líderes terminou para sempre, e Gaddafi foi o último de seus representantes.

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