Os escritores de ficção científica costumam pintar quadros tristes de um futuro próximo marcado por distúrbios incessantes e confrontos em massa com a polícia nas ruas das capitais mundiais, privadas de seu chique e esplendor. No último sábado, suas fantasias se materializaram em três megalópoles: Londres, Nova York e Roma, onde as ações de protesto tiveram um mesmo roteiro.
As ações começaram com passeatas pacíficas e terminaram em batalhas contra a polícia e dezenas de prisões, diferenciando-se apenas pelo nível de emoções e as proporções dos danos materiais. Os italianos foram os mais revoltados. Os especialistas não excluem a hipótese de que as ações de sábado sejam um ensaio de um verdadeiro “triunfo da anarquia” que pode ocorrer nos dias 3 ou 4 de novembro próximo, quando Cannes vai sediar mais uma cúpula do G-20. As ações do movimento “Ocupar Wall Street” estão sendo intensamente comentadas na imprensa russa.
Gazeta Russa oferece uma paleta de opiniões mais interessantes sobre os recentes acontecimentos.
Ao olhar ao redor, as pessoas descobriram que as instituições democráticas não funcionam, ou seja, não protegem os interesses dos cidadãos, e que os governos dançam conforme o grande capital toca. E nada pode ser feito, porque qualquer tentativa de auto-organização fica imediatamente sob o controle dos manda-chuvas que possuem recursos suficientes para intimidar ou subornar qualquer líder político e tomar sob seu qualquer organização.
Atacando Wall Street, os manifestantes não se esquecem de frisar que seus protestos não se resumem à tese de alguns serem ricos e outros serem pobres. Eles estão preocupados com o atual estado de coisas em que os banqueiros e financistas governam tudo e o sistema existente está configurado de modo que ninguém possa resistir permanecendo nele. Parece que os ativistas do movimento conseguiram levar essa idéia simples a muitos de seus partidários. Se deixarmos de lado os problemas pessoais dos protestantes, comentados, aliás, de bom grado pelos mesmos diante das câmaras, verificaremos que quase todos os entrevistados dizem direta ou indiretamente que o grande capital subjugou todos e tudo e que suas instituições e a democracia representativa em sua atual forma não expressam a vontade do povo e, de fato, não é uma democracia. Daí a conclusão óbvia: a ordem existente deve ser alterada, precisamos de uma outra democracia, uma democracia real.
Se a situação continuar se agravando, a revisão dos conceitos habituais vai prosseguir. Se a crise começar a diminuir e as classes governantes encontrarem possibilidades e recursos para corrigir suas políticas, os manifestantes logo voltarão à vida normal e se esquecerão de suas iluminações e revelações, já que as pessoas querem viver uma vida normal e não lutar em barricadas.
Mas eles já serão pessoas diferentes porque o próprio surgimento do movimento “Ocupar Wall Street”, bem como ações de milhares de protestantes nos Estados Unidos e na Europa, evidenciam uma grande mudança na psicologia da sociedade moderna.
Meus colegas jornalistas de esquerda liberal se apressaram em anunciar o surgimento de um novo fenômeno global, capaz de obrigar os governos e megacorporações a lhe dar ouvidos. Não encontro, por enquanto, nenhuma novidade nisso, pois os manifestantes que invadiram as ruas e praças das capitais ocidentais são, em sua maioria, as mesmas pessoas que temos tido a oportunidade de observar nos últimos vinte anos, durante cada reunião do G-8, isto é, antiglobalistas, ambientalistas radicais, pacifistas e outros opositores de todos os matizes dos EUA e de Israel, além dos marxistas e trotskistas. A luta pelo controle do Estado sobre o sistema bancário é, para eles, apenas um pretexto para reanimar a agenda que, aparentemente, foi enterrada com o colapso da União Soviética.
Boa parte desses manifestantes são jovens descendentes de famílias abastadas que têm possibilidades financeiras para ficar na ociosidade buscando o sentido da vida até, pelo menos, 40 anos de idade. Eles migram entre os movimentos radicais em voga, não têm, em regra, problemas com os bancos e se esses de repente surgem, seus pais os resolvem. Outro grupo menor de manifestantes são aqueles que, segundo disse figuradamente John Le Carré no romance “O espião que saiu do frio”, nunca estiveram dentro de um banco e dificilmente poderão ficar lá futuramente. Mas eu não acho isso engraçado. Não acho engraçado que esses manifestantes chamem de “nossa Tahrir” as praças das cidades européias porque, no Egito, pessoas morreram pelo direito de viver condignamente e não pelo direito de ficar ociosos até a aposentadoria. Não acho engraçado que os demagogos e os perdedores crônicos se pronunciem em nome do povo, porque sabemos pela experiência soviética e alemã quão trágico pode ser o fim de tais pronunciamentos. Não acho isso engraçado, porque nos propõem reagir à primeira crise da sociedade pós-industrial que está em vias de globalização da maneira típica do personagem do “Coração de Cão”: “Tomar tudo e dividi-lo”.
Não sou economista nem financista e não vou sugerir soluções para a situação criada porque não sou tão competente quanto os arruaceiros de Roma ou os esquerdistas que sujaram o centro de Nova York. Mas eu sei uma coisa: o que precisamos em último lugar são das recomendações dos hipsters ociosos que buscam sensações fortes.
Todos os direitos reservados por Rossiyskaya Gazeta.
Assine
a nossa newsletter!
Receba em seu e-mail as principais notícias da Rússia na newsletter: