Intervenção na Líbia tem razões colonialistas

Caricatura de Muammar Kadafi em Trípoli Foto:Reuters

Caricatura de Muammar Kadafi em Trípoli Foto:Reuters

A derrubada de Muammar Kadafi pode não ser o fim, mas o início de uma verdadeira crise na Líbia.

A mudança do regime ocorreu de fato e ninguém duvidava de que o objetivo era justamente esse desde que a Otan havia lançado a operação “Odisséia ao Amanhecer”. A maior aliança político-militar do mundo não podia permitir que seu adversário permanecesse no poder. Agora que a missão está cumprida, é tempo de fazermos um balanço preliminar.

Para a Otan, essa foi a terceira maior campanha depois das operações contra a Iugoslávia, em 1999, e o Afeganistão onde os combates continuam ainda hoje. Como no Afeganistão, a operação na Líbia teve um bom respaldo jurídico, ou seja, uma resolução do Conselho de Segurança da ONU aprovada por todos, menos cinco países que se abstiveram. A Otan não violou nenhuma das disposições desse documento nem aquela referente à proibição de realizar uma operação terrestre, só que a arrancada final para a vitória dada pelos rebeldes depois de vários meses parados e a derrubada de Kadafi causa a impressão de que eles foram auxiliados por alguém.

Pela primeira vez, a Aliança do Atlântico Norte interveio em uma guerra civil em favor de uma das partes do conflito, sob o pretexto de proteger a população civil de acordo com a Resolução do Conselho de Segurança. Mais tarde, todas as desculpas foram abandonadas.

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Nas campanhas anteriores, a Otan também teve apoio de estruturas amigas nos países atacados: o Exército de Libertação do Kosovo na Iugoslávia e a Aliança do Norte no Afeganistão. Mas nunca antes a oposição havia sido proclamada de antemão como governo legítimo. Mesmo que Kadafi tenha perdido o direito moral de ser líder da Líbia, ao usar, em larga escala, armas contra a população civil, por que razão os países da Otan persuadidos pela França, promotora da campanha política e militar, e aplaudidos por alguns países do Golfo, conferiram os poderes aos rebeldes de Benghazi, abrindo assim um precedente emblemático de métodos coloniais?

Com efeito, o esquema é simples: um grupo de países proclama uma das partes do conflito que acha mais simpática como governo legítimo. Em seguida, abre uma linha de ajuda financeira e militar para o novo governo e lhe passa os ativos congelados, tanto privados quanto públicos, após o que procede à conclusão de contratos no setor de petróleo e outros. As grandes potências reconheceram o Conselho Nacional de Transição (CNT) muito antes da queda de Trípoli. Agora outros países se apressam a fazer o mesmo para não ser os últimos na corrida. Enquanto isso, não são claros sequer os princípios em que foi formada a nova e já universalmente aprovada estrutura governante nem por quanto tempo ela será capaz de existir sendo tão heterogênea.

Um dos motivos que estiveram na origem da campanha na Líbia foi o desejo da França e Grã-Bretanha de provar sua capacidade como ainda grandes potências e o da Otan de mostrar seu poderio militar. Terão os promotores da campanha conseguido seu objetivos? Em termos de propaganda, pode ser que sim. A derrubada do ditador líbio ficará como grande conquista no currículo de Nicolas Sarkozy, David Cameron, Anders Fogh Rasmussen e Barack Obama.

O motivo de especial orgulho para a Europa é ter carregado quase sozinha o fardo da operação, deixando os EUA na sombra.Na  verdade, nas fases cruciais da operação, em que era necessário destruir boa parte da máquina de guerra de Kadafi, coordenar as ações e colher informações, o papel-chave pertencia aos EUA. As fases da operação em que os países europeus agiram sozinhos exigiram deles o envolvimento de todos seus recursos. Agora os países da OTAN têm folga e podem adiar, por algum tempo, a discussão desagradável sobre o sentido e a finalidade da aliança.
Enquanto isso, seria interessante ver, nas próximas semanas e meses, como as companhias de petróleo das “potências vencedoras”, França, Grã-Bretanha e Itália, vão dividir os troféus.

Pelo menos, Paris e Roma já reclamaram para suas empresas petrolíferas uma posição de liderança na Líbia. A British Petroleum (BP) também pretende reivindicar seu quinhão. Os países do grupo Brics, que se abstiveram na votação da Resolução do Conselho de Segurança, não têm nenhuma chance, como já declararam as novas autoridades líbias, o que é completamente lógico: os países ocidentais arriscaram e ganharam a aposta. No meio das discussões sobre o negócio do petróleo poderão ser esquecidos os objetivos humanitários inicialmente proclamados, mas quem se importa com isso?

E que dizer da posição da Rússia em relação à Líbia? Terá sido ela correta? Em última análise, Moscou ficou com nada. Não usou seu único recurso, o poder de veto no Conselho de Segurança da ONU, nem se colocou ao lado dos combatentes contra a tirania. 

Durante a votação de março, Moscou abdicou de seu princípio tradicional de não apoiar intervenções nos assuntos internos de outros países. O presidente da Rússia, Dmítri Medvedev, deve ter considerado que Kadafi não era um cliente digno de uma complicação das relações com a Europa e os EUA, por um lado, e que, por outro lado, as acusações no sentido de ser a Rússia a responsável pelo sangue das vítimas de Benghazi não eram do interesse de Moscou. Essa posição foi criticada por muitos no país, inclusive o primeiro-ministro, embora neste caso tenha sido devido à perda da vantagem esperada.

É pouco provável que o veto russo, a que se poderia seguir a tomada de Benghazi, teria deixado aberta a possibilidade de negociar com a Líbia como antes. A crise continuaria de qualquer forma, pois a situação no país e no norte da África já estava desestabilizada. O regime líbio não tinha apoio na região. Não foi à toa que a intervenção foi idealizada pela Liga Árabe, dominada pelos regimes mais conservadores do Golfo para os quais Kadafi era, há muito, um osso preso na garganta. O aumento da influência das monarquias do Golfo é um dos resultados da “primavera árabe”.

É possível dizer que a Rússia teve que ceder em sua posição e aceitar uma “intervenção humanitária”? Partindo da lógica das relações internacionais, evidentemente que não. O evoluir dos acontecimentos veio demonstrar uma vez mais que as concessões não existem. Quem abdica de seus princípios em uma ocasião, não pode esperar vê-los observados em outra. Todavia, a julgar pela lógica da atual política externa da Rússia voltada para a minimização de prejuízos e conflitos, a decisão da Rússia foi completamente lógica. Com efeito, se você não pode evitar um acontecimento sem entrar em conflito com o Ocidente e esse conflito não está entre as metas de sua política internacional, é melhor não participar. E assim aconteceu: as tentativas pacificadoras empreendidas em junho não passaram de uma fachada de atividades intensas.

De modo geral, a campanha líbia deixou uma impressão pesada. Há muito tempo não se via tanta mentira e hipocrisia como agora. Os interesses egoístas e os ideais humanitários se entrelaçaram, fazendo um todo indivisível, e as regras de conduta não têm mais validade.

Se no Iraque, por exemplo, isso foi uma consequência de uma ação empreendida à revelia dos procedimentos do direito internacional e da ONU universalmente aceitos, hoje, isso é uma consequência da rigorosa observância desses procedimentos. A erosão das instituições internacionais avançou à fase seguinte, em que reina o caos. 

Fiodor Lukianov é o redator-chefe da revista Russia in Global Affairs

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