Pelo direito ao meio-termo

Por que os russos se preocupam tão pouco com as eleições, porque têm pouca confiança na justiça e evitam processos judiciais a todo custo? A resposta é simples: porque as eleições não são totalmente transparentes e a independência judicial não é completa.

Caricatura:Niyaz Karim

Escrever sobre traços do caráter nacional é sempre uma questão delicada, ainda mais na Rússia. Em um país tão vasto é possível achar dúzias de casos que ilustrem qualquer generalização. 

Assim, não irei discorrer sobre estereótipos culturais primitivos, como os que dizem que “os russos são uns beberrões” ou “preguiçosos”, afirmações que não são verdadeiras.

Vamos nos deter em pontos mais complicados, como a democracia e a moral. Por que os russos se preocupam tão pouco com as eleições? Por que têm pouca confiança na justiça e evitam processos judiciais a todo custo? A resposta é simples: porque as eleições não são totalmente transparentes e a independência judicial não é completa.

Em nossa história, tivemos julgamentos honestos e eleições decentes em alguns períodos. Mas, mesmo no início dos anos 90, quando aconteceram as melhores eleições da história da Rússia e já era possível escolher entre partidos políticos, a maioria dos meus amigos não votava.

Eu costumava me perguntar se eles não se preocupavam nem um pouco. Não. Quase todos eram pais cuidadosos, amigos fiéis e profissionais responsáveis. O que faz com que os russos duvidem das eleições é nossa tendência de buscar o absoluto – incluindo liberdade absoluta.

Lembro de um amigo que “desencanou” das eleições presidenciais quando tinha 20 anos porque então só quem tinha mais de 35 anos podia se candidatar.

Esse tipo de atitude pode parecer inconcebível para uma mente ocidental, que enxerga um indivíduo primeiro como eleitor e consumidor. Os russos estão preocupados com o indivíduo como um todo.  É de se notar que até hoje nenhum juiz ou advogado tenha se tornado uma autoridade moral na Rússia (Lênin era advogado apenas por formação). No entanto, ao menos quatro escritores de ficção, sim: Tolstói, Turguienev, Dostoiévski e Soljenítsin. O motivo provavelmente seja o fato de o escritor ver o ser humano como pessoa, e não como cidadão.

Claro que nem todo russo moderno almeja isso. Mas esse tipo tradicional ainda existe. Essa busca do absoluto é mais visível em revolucionários, incluindo dissidentes atuais.

O ativista político Vladímir Bukóvski, que emigrou para os EUA nos anos 70, deu um passo tipicamente russo ao tentar prender Mikhail Gorbatchov em Londres durante a festa de aniversário de 80 anos do ex-presidente soviético.

Para a mente pragmática do Ocidente, os feitos de Gorbatchov superam as brutais intervenções militares em Baku, Riga e Vilnius. Para Bukóvski, alguém sem ideais merece cadeia, e não um baile de aniversário. Mas a “lógica impiedosa da mente russa”, como diz uma expressão do século 19, não fica atrás do comportamento ocidental.

Foi isso que Bukóvski escreveu sobre a Grã-Bretanha em seu livro Notas de um Viajante Russo: “Os oficiais locais não têm medo de reclamações, já que são mais independentes de seus superiores que seus correspondentes na Rússia. Quanto mais mesquinho for um oficial, maior será o poder dele sobre os demais.”

Antecessor de Bukóvski, o emigrante político Aleksandr Herzen queixou-se durante o século 19 de uma “polícia interna”, à espreita, observando cada ocidental. Isso os tornou ainda menos livres que os russos, segundo Herzen. 

Bukóvski tem uma obra recheada de exemplos de sua luta contra a burocracia ocidental (escrevendo cartas ao secretário de Estado norte-americano em apoio aos emigrantes russos que tiveram vistos negados etc.). Uma visão um tanto idealista, mas fundamentalmente russa.

Existem muitos Bukóvskis vivendo na Rússia, alguns dos quais a imprensa ocidental transforma em heróis. Em muitos casos, isso é correto. O que está errado é a visão de que o mundo ocidental faz jus aos ideais bukovskonianos.

Sendo os mestres do meio-termo, os ocidentais deveriam permitir algum aos russos também, e parar de estabelecer um padrão diferenciado, ainda que este tenha sido inventado por um de nossos idealistas.

Dmítri Babitch é colunista da agência de notícias RIA Nóvosti.

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