Tudo por dinheiro

Foto:Kommersant

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Não é à toa que os participantes de atos de protesto têm caras tão tristes: muitas delas estão lá só para ganhar uns trocados, não por apoiarem os movimentos que promovem tais eventos.

Para convencer pessoas comuns a participar de um comício, o preço normal é de 200 rublos. Todos os partidos e movimentos, inclusive a oposição, realizam essa prática – somente o núcleo ideológico, pouco numeroso, das forças políticas sai às ruas de graça. A propósito, há tempos que isso não é mais censurado: se figuras políticas famosas costumam simular lutas políticas, por que os anônimos não têm direito de pôr à venda a sua ideologia?

“O comício é realizado pelos investidores que foram enganados”, respondeu-me uma moça ao telefone. “Diga-me o seu apelido e a sua idade. Tome nota: às 13h, na entrada do McDonald’s da praça Puchkinskaia, você encontrará uma senhora com um pequeno cartaz. Nele, estará escrito ‘Victoria’. Diga a ela que chegou da Lília”, finalizou.

Ainda que nenhum partido ou movimento vá reconhecer que paga pela participação popular, a verdade é que, para organizar qualquer grande manifestação, essas organizações encomendam quórum a intermediários, que podem ser recrutadores, promotores ou relações-públicas. Essas negociações são muito comuns durante as festas promovidas pelo Estado, quando as agremiações tentam provar que ainda estão vivas na sociedade local.  

Hipocrisia popular

Em um dia de chuva, uma mulher corpulenta de meia-idade trava o seguinte diálogo com um brigadeiro:

– Hoje, o que temos?

– Não sei

– Como assim? Vocês reúnem pessoas para um comício e não sabem nem qual é? Disseram-me que é o dos investidores.

– Nicolai, hoje faremos qual manifestação? – pergunta o brigadeiro a outro homem.

Responsável pela nossa reunião, o rapaz responde:

– Parece-me que da União Euroasiática dos Jovens. Mas não tenho nada a ver com isso.

A mulher se chama Maria. Está desempregada e tem baixo nível de instrução. Ganha dinheiro apenas participando de pesquisas e fazendo pontas no cinema.

Passados uns minutos, os organizadores conduzem um grupo de origem desconhecida, vindo de estações ferroviárias ou de regiões vizinhas. É formado por homens de jaquetas e rostos amassados, que cheiram a vodca. Há também um grupo de vietnamitas: velhas, parecidas com ciganas, portando grandes bolsas. Mais tarde, dois moços conduzem uma multidão de estudantes da Universidade das Telecomunicações e Informática. No total, somos cerca de uma centena.

Um pequeno furgão chega à praça trazendo um palco e um microfone. Ao saírem do veículo, os rapazes carregam um enorme cartaz, no qual se vê uma moça com um fuzil-metralhadora nas mãos – podia-se pensar que ela é uma chakhid (terrorista suicida), mas o xale que ela tem nos ombros é claramente de origem russa. Então, eles entregam aos estudantes um cartaz com a inscrição “morte aos espiões!”, com uma forca no lugar da letra “o”.

“Saúdo a todos vocês, amigos! Hoje é o Dia da Unidade Popular! Poucos recordam que festa é essa. Enquanto isso, há 400 anos, Minin e Pojarski…”, ouve-se da tribuna. No entanto, ninguém se interessa pelo jovem que grita slogans da tribuna. Uns fumam cigarros; outros, divididos em grupos, apenas sofrem com o frio. O discurso é apoiado por não mais que uma dezena de pessoas. Aproximo-me daqueles que visivelmente foram ao local sem ter o menor interesse.

Uma senhora de boina limpa o cartaz das gotas da chuva. Ao pé dela, está uma menina de cerca de seis anos, que tem frio e esquenta as bochechas com as mãos.

“Prometeram-me duzentos rublos por esse comício, e a você?”, pergunto à mulher. “Como? Não acredito nessas histórias. Será possível?”, respondeu ela.

Lucro é o que interessa

De acordo com os especialistas em ciências políticas, atualmente quase todas as manifestações populares têm participação de pessoas remuneradas. “Não se pode dizer que um movimento sempre paga e outro não. A oposição parlamentar também pode organizar um comício desinteressado, desde que ele seja dedicado a um problema social agudo, que afeta muitas pessoas”, assegura Evguêni Mintchenko. “Isso significa que a importância dos problemas debatidos nesses protestos é o critério que permite definir se o comício é pago ou voluntário.”

Além disso, as pessoas estão prontas a seguir líderes carismáticos, como garante Eduard Limonov. “Hoje em dia, as atividades públicas são organizadas com o objetivo de atrair novos partidários. O serviço de relações públicas nos meios de comunicação social é а tarefa mais importante desses encontros”, diz Aleksêi Múkhin, diretor do Centro da Informação Política. Ele afirma que não há nada de amoral no fato de uma multidão ser remunerada se o próprio comício tem objetivos nobres e esse é o único modo pelo qual as pessoas podem ser atraídas a participar.

De acordo com o diretor, os clientes pagam, em regra, cerca de 500 rublos por cabeça. O dinheiro passa por toda a cadeia dos intermediários e, no fim das contas, o “figurante” recebe, na melhor das hipóteses, de 200 a 250 rublos. Falo a ela a respeito das minhas impressões sobre os participantes do comício na praça Puchkinskaia – parece que eles não fazem aumentar a importância da manifestação; pelo contrário, desconsideram-no.

“Normalmente, esse contingente costuma ser mais decente”, responde Múkhin. “Pelo jeito, isso ocorreu por desleixo dos recrutadores. Os organizadores procuram descartar aqueles que levam pessoas impróprias às manifestações.”

Senhoras

Tendo recebido o pagamento prometidos pelo primeiro comício, permaneço no McDonald’s à espera do segundo. No banheiro feminino, entra um grupo de mulheres de terceira idade com grandes bolsas e guarda-chuvas. Ligam torneiras automáticas e perguntam como desligá-las.

Na entrada, noto que há uma senhora com um rosto enrugado. Ela carrega um guarda-chuva quebrado, que mal cobre a sua cabeça, protegendo-a contra a chuva. Ao lado da mulher, está um homem de olhos grandes, nos quais vejo toda a sua alma, sua vida, as ofensas que sofreu. Nos anos 90, vi muitas pessoas assim, mas depois elas desapareceram.

Os talões distribuídos pelos organizadores no local são flyers de um salão de automóveis. São documentos muito importantes, pois possibilitam o recebimento do pagamento pela participação no comício.  A última etapa da preparação da ação é a distribuição das capinhas azuis brilhantes do Partido Liberal Democrático, pelas quais se iniciou uma luta feroz: como o dinheiro ainda estaria por ser entregue, os velhinhos estão contentes de receber alguma coisa. Alegres como meninas, as senhoras enfiam cabeças nos buracos e enfaixam fitas nos quadris. São organizadas em pares, como se fossem do jardim da infância, e conduzidas à praça Puchkinskaia.

Um show de rock, prometido pelo fórum Massovki.ru, transformou-se na marcha “Despedida da Eslava”, interpretada por uma orquestra. Então percebi que, se os estudantes venderam apenas a sua presença, fizeram o mesmo com os seus votos. Senti-me mal, pensando que a vida é capaz de fazer pessoas da terceira idade ficarem sob a chuva por duas horas só para receber 200 rublos e gritar  “Hurra!” e, depois,  vão votar nesse partido – afinal, foram eles que lhes deram algo.

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