Fotos: Ruslan Sukhuchin
Setenta anos depois, Aleksandr Aleksándrovitch não precisa mais fugir dos nazistas nem esconder civis, mas, por alguma razão, está agitado. Seu apartamento fica num típico bairro-dormitório de Moscou, em um velho prédio de oito andares. Mas “tio” Sacha, como é conhecido entre os vizinhos, não liga para a atual situação: hoje, ele vai à escola contar sobre a guerra.
Como de costume, às vésperas do dia 9 de maio, quando é celebrado o Dia da Vitória, todas as escolas municipais da capital russa convidam veteranos da Segunda Guerra Mundial para se apresentar aos alunos, além de organizar festas e apresentações musicais. O conselho dos veteranos do bairro em que Aleksándrovitch mora conta hoje com vinte membros. Quase todos foram combatentes, um possui o título de Herói da União Soviética e há diversos veteranos de retaguarda, que trabalharam em prol da frente de batalha fabricando armamentos e assando pães. Uliánov está apressado para chegar ao local da reunião: o terminal de ônibus fica a uns dois quilômetros de sua casa. Aparentemente, ele não sente o peso da idade nem do volumoso casaco onde estão suas muitas insígnias. Outro veterano surge no meio da rua, desviando dos carros.
- Achei que seria o primeiro! Moro do outro lado da rua.
- Chegamos antes de! Nós somos partisans! - diz “tio” Sacha, sorrindo e batendo continência para o camarada mais velho.
- Vocês querem se sentar? - diz o guarda da estação, levando uma cadeira aos dois.
- Somos jovens! Vamos ficar em pé. Tenho só 88 anos!
O micro-ônibus escolar se aproxima e a cada minuto chegam mais e mais veteranos.
- Está faltando o Sídorov! - diz a mulher que organiza a contagem dos participantes.
- Não vai mais poder ir - responde a vizinha.
No pátio dos fundos da escola, os veteranos são recebidos pelos melhores alunos da 5ª série, que estão enfileirados. Os professores convidam todos para ir ao segundo andar do prédio.
- Outro dia, na rua, uns cinco ou seis rapazes armênios vieram falar comigo - conta um dos veteranos no caminho. - Viram as medalhas, as estrelas. Conversaram comigo e me cumprimentaram. Isso não tem preço. E as crianças aqui da escola também nos amam. Tudo bem que só duas vezes por ano: no 23 de fevereiro (antigo dia do Exército Vermelho, agora dia dos Defensores da Pátria) e no 9 de maio.
Na escola, as colunas ecoam canções sobre a guerra, enquanto coroas, metralhadoras e baionetas (desenhadas, é claro) decoram as paredes. Todo o evento é filmado por um dos professores. Afinal, não é uma escola comum, pública, mas sim particular. Os alunos são filhos de pais bastante abastados: um dos estudantes tem até um guarda-costas.
- Você era criança na época da guerra? - pergunta uma das alunas à veterana Svetlana Semiônovna.
- Sou da geração das crianças nascidas depois da guerra - começa a contar a mulher sorridente e de meia-idade. - Passamos toda a nossa infância em filas para pegar querosene, para pegar pão. Meia-calça? Nem sabíamos o que era isso. Comprar um pedaço de tecido para fazer um vestido de formatura já era muita sorte.
- Queridas crianças, vocês são o nosso futuro! - diz, com a voz embargada, Piôtr Ilítch, que foi operador de rádio durante a guerra. - Tivemos a honra de defender a pátria durante a nossa juventude. Nós, rapazotes de 19 anos, fomos ensinados a comandar tropas. Os soldados eram meus pais - continua ele, referindo-se à diferença de idade. - Eu os comandava. Conseguimos a vitória com suor e sangue. Muitos morreram porque não tinham com que atirar. Faltavam armas e munição.
- Tive que participar de uma ofensiva - lembra outro veterano - em que aconteceu o seguinte: o alemão largou a arma e gritou Ich bin Gall, ich bin Gall! (“Sou francês! Sou francês!”) Fiquei com dó e não atirei. Seu exército que cuidasse dele. Naquele combate, fui ferido na coluna.
- Sou veterano, nasci em 1933. Lembro-me de ter visto um combate de caças no céu e de ter pensado que eram simples exercícios. Mas era a guerra - conta Ivan Petrôvitch. - Durante a evacuação, trabalhei numa fábrica e, depois da guerra, fui para a escola. Na época, não nos preocupávamos com o futuro. Tínhamos um caminho traçado: acampamento dos pioneiros, escola, Juventude Comunista, depois curso superior e nomeação para algum trabalho. Nem pensávamos nessas coisas da vida.
- Pensávamos no desenvolvimento da ciência, em como fazer para não ficarmos atrás dos americanos. Depois do curso superior, fui encaminhado para uma fábrica que desenvolvia motores para naves espaciais. No dia 12 de abril de 1961, estava na biblioteca Lênin e ouvi que Gagárin tinha voltado do espaço. E fiquei orgulhoso por ele não ter pousado em Seychelles ou Londres, mas no nosso país. Porque a guerra não acabou em 1945: começou-se, isso sim, a Guerra Fria. E quando a Rússia foi para o espaço, o mundo inteiro viu que não podia brincar conosco.
O veterano com o título de Herói da União Soviética toma a palavra e cita de memória versos de sua própria autoria: “'Não apenas a morte e os impostos são inevitáveis... E alguém, traindo os soldados vencedores, apagou do mapa da Rússia a nossa Stalingrado. Quero ainda acrescentar que há na França uma praça, uma rua e uma estação de metrô Stalingrado. Eles sabem que foi lá onde começou a libertação. Isso que temos hoje na Rússia, não foi por isso que lutei. Nós lutamos pelo socialismo”.
Os vinte minutos dedicados ao encontro se esgotam e a emocionada professora convoca a todos para a apresentação musical. Trêmula, ela ouviu o relato dos veteranos: na família de Zôia Aleksándrovna também havia um Herói da União Soviética, que recebeu o título aos vinte anos por lutar por sua terra natal, o Daguestão. Agora, parecia tocada pelas palavras dos veteranos.
- Durante a guerra ninguém perguntava quem era tadjique, quem era uzbeque. Todos eram enterrados com as mesmas honras. Agora, esses povos são rotulados como terroristas. O Daguestão virou um lugar abandonado: as pessoas com alguma instrução vêm para cá. Devia-se dar um trabalho para essas pessoas, uma perspectiva. É preciso integrar todos os povos do nosso país.
No auditório da escola, deu-se início ao show: um rapazote num elegante traje ceceia as palavras do texto “Sobre a Guerra”. Sentados nas primeiras fileiras, os veteranos observam a cena atentamente. As atrações vão se sucedendo e, mesmo quando algo dá errado no palco – um slide que desaparece do painel, um microfone que não funciona –, os veteranos não se abatem de forma alguma. Eles até se arriscam a cantar algumas das músicas do repertório do front.
A apresentação lentamente dá lugar ao almoço de celebração, quando os já cansados veteranos são acomodados em amplas mesas para descansar e comer: os cem gramas do front, graças a Deus, ainda não foram tirados.
Enquanto os veteranos descansam, a vida na escola volta a seu ritmo normal: os gritos, a correria nos corredores, o descaso do diretor da escola, que fica pouco severo com os alunos ao fim do dia de comemorações. De repente, um grupo de meninas começa a cantar a famosa canção “Dia da Vitória”. Os veteranos fazem coro.
Quando o dia se aproxima do fim, os veteranos são levados para suas casas. Aleksandr Uliánov nos convida para voltar com ele.
- Esse é o meu local de trabalho – diz o partisan, caminhando até o computador de sua filha. - Ela não quer se mudar para o apartamento novo que conseguiu.
- Veja só esse livro, “Os Filhos do Batalhão”. Foi escrito sobre nós, crianças partisans, por um alemão. Os autores russos também escreveram livros, como esse aqui: “As Pequenas Águias do Front Bielorrusso”.
Encontramos ali a história de Sacha e de muitos outros veteranos daquela guerra. Mas, dessa vez, não será possível ouvi-las. O antigo partisan tem mais um compromisso hoje: o aniversário de seu filho. Por fim, “tio” Sacha diz com orgulho que foi convidado para desfilar na Praça Vermelha este ano. No ano passado, faltaram vagas: no lugar de Uliánov, convidou-se o diretor do conselho de veteranos do bairro e dois de seus assistentes, embora nenhum deles tenha lutado na guerra.
- E, no dia 9, à noite, estarei na Casa do Cinema. Vou encontrar dois cinegrafistas de guerra que ainda sobraram. Vocês estão convidados!
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