Iéltsin estava do lado certo da história

Foto: Reuters/Vostock Photo

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Boris Iéltsin evoca sentimentos confusos entre os seus compatriotas, mas, no fim das contas, ele fez mais coisas boas do que ruins

O presidente Boris Iéltsin é um homem do nosso tempo. Por isso, não temos aquele distanciamento temporal suficiente para avaliá-lo por completo sem nos equivocarmos. Há inumeras pessoas que se lembram dele muito bem. Muitos dos meus amigos trabalharam de perto com Iéltsin como jornalistas e redatores de seus discursos, fotógrafos, intérpretes e conselheiros. Eles se lembram de como o ex-presidente falava e se mexia, das vezes em que ele era grosseiro, ou como era contanto piadas e bebendo champanhe e vodca. Para alguns de nós, parece que foi ontem que ele fez os seus famosos pronunciamentos “não haverá negligência!” e “eu me deitarei nos trilhos dos trens se os preços subirem”.

Conversei com Iéltsin apenas uma vez, em 1990. Eu era um jornalista jovem da TASS (Agência de Informação e Telegrafia da Rússia) em Moscou, que estava acompanhando uma reunião com a delegação do parlamento polonês. Ele tinha acabado de ser eleito presidente do Soviete Supremo, a mais alta instância legislativa da União Soviética. Depois do encontro, eu deveria conversar com ele a fim de apurar os dados para produzir o texto. “Pelo que posso ver, você é um homem experiente (e isso não era verdade!). Ficará a seu cargo definir o texto”, disse ao se despedir de mim com um aperto de mão.  

Eu o vi falar na Universidade Estadual de Moscou em 1998 e aquilo me impressionou. Ele tinha um aspecto heroico, conforme todo mundo já havia me dito. Vi Iéltsin novamente nas salas de cinema Dom Kino, onde deu um abraço apertado no dissidente polonês Adam Michnik. Assim que foi expulso do Politburo do Partido Comunista, peguei um retrato seu e o coloquei sobre a estante de casa. O meu sábio avô jogou o retrato fora e disse “Não seja idiota! Enquanto eles estão brigando pelo poder, você está aí tomando partidos”.

Meus amigos avaliam o ex-presidente de forma diferente. Aqueles que trabalharam com ele – com algumas poucas exceções – dizem que foi ótimo governante, com um tremendo carisma. A melhor caracterização foi feita por Strobe Talbott, que uma vez disse que Iéltsin tinha uma personalidade vulcânica. Ele podia ser imprevisível, mas os seus instintos políticos estavam presentes no cenário político russo.

Também já ouvi outras pessoas dizerem que ele deixou o país de joelhos ao cometer diversos erros cruciais – incluindo o processo de privatização, durante o qual monstros e bandidos tomaram controle da propriedade soviética. Ele também iniciou uma guerra na Chechênia e levou ao poder como seu sucessor “alguém de que não seremos capazes de nos livrar tão cedo”. Para mim, porém, essa é apenas uma simplificação de Iéltsin.

Os seus parceiros dizem que Iéltsin trouxe liberdade e privilégios à Rússia. Outros dizem que foi Gorbatchov, e não ele, quem deu início a liberdade de imprensa (“glasnost”), abriu as portas da União Soviética para o mundo, organizou a primeira eleição democrática e alternativa, publicou Solzhenitsyn e não usou força bruta contra a oposição. 

Na década de 1980, a população russa tinha muitas expectativas. Gorbatchov parecia um indivíduo incomum e promissor quando comparado aos seus pares. Entretanto, os seus objetivos não eram claros, e com o tempo ficou evidente que ele se preocupava muito mais com os seus amigos do Partido Comunista e com as suas ambições políticas. Iéltsin parecia capaz de fazer e arrumar o que fosse necessário, de promover mudanças reais. E, de fato, ele conseguiu. Revisou e alterou o tradicional banimento comunista de direito à propriedade privada – e esta foi a sua conquista mais significativa.

Mas ele não fez todos felizes na Rússia. As minorias nacionais são uma parte significativa da vida política. Os conflitos étnicos de difícil resolução no Cáucaso do Norte – consequências da política nacional soviética e o subsequente vazio de poder nas sociedades onde instintos feudais ainda eram bastante fortes – não lhe deram muita chance. Apoiei com veemência as suas atitudes em 1993 contra o Supreme Soviético, cujos membros organizaram, como disse Anatoliy Chubais, um “golpe fascista-militar” contra Iéltsin. Eu percebi a fragilidade do modelo econômico que ele tinha construído no início dos anos 90 e previ a crise de 1998, que representou um divisor de mares para Rússia e para o próprio ex-presidente.

A partir de 1998, Iéltsin mudou, desgastado pela batalha política. Ele era um ser humano que não estava isento de maus hábitos. Tinha um sério problema de coração e tomou muitas decisões difíceis. Começou a criticar os Estados Unidos e discutiu abertamente com o seu amigo Bill Clinton, o presidente norte-americano que mais se preocupou e dedicou atenção à Rússia em toda a história. Ele não era mais aquela pessoa na qual depositávamos nossas aspirações e expectativas em 1987.

Durante a sua renúncia, ele mais uma vez mostrou ser o homem de quem tanto gostávamos na década anterior. Um ser humano capaz de um gesto, de um passo, de ações. Ele pediu perdão, algo que poucos políticos conseguiriam fazer. Eu me lembro de Iéltsin como alguém que se preocupou com a sua nação e sempre sentiu estar do lado da virtude, do lado certo da história. 

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