Única foto colorida de Tolstoi, tirada em 1908 por S. Prokodin/Foto: ITAR-TASS
Cem anos se passaram desde a madrugada de meados de novembro em 1910, quando um senhor de 82 anos abandonou às pressas e escondido da mulher a propriedade Iásnaia Poliana, cerca de 200 quilômetros ao sul de Moscou, em um episódio que repercutiu pelo mundo. O nome do senhor cuja fama extrapolava as fronteiras russas era Lev Tolstoi.
Se houve na Europa do início do século 20 uma autoridade espiritual, era ele, o ancião de Iásnaia Poliana.
Sua partida e os dez dias seguintes até sua morte foram logo tomados por invenções e boatos. E, passados cem anos, fica ainda mais difícil distinguir a verdade da imaginação popular.
Mesmo assim, esse é o objetivo proposto pelo escritor e jornalista Pavel Basinski, autor do livro “Fuga do Paraíso”, publicado neste ano, em Moscou – e por enquanto disponível apenas em russo, sob o título original “Begstvo iz Raia”.
Basinski examinou os caminhos de Tolstoi nas mais diversas fases de sua vida. De “jovem malandro”, como era chamado pelos irmãos, até os tempos de oficial emérito, senhor de terras, chefe de família, escritor famoso e, finalmente, professor da natureza humana. Caminho longo e glorioso, mas também amargo.
Tolstoi acreditava que o homem tinha sido feito para a felicidade. Ele mesmo aspirava à felicidade e ao paraíso – não para desfrute individual, mas para o maior número de pessoas possível. Buscava esses objetivos desde que, ainda criança, enterrou com o irmão Nikolai, nos arredores de Iásnaia Poliana, o simbólico “graveto verde”, objeto que, segundo a lenda inventada por eles, teria o poder de fazer todas as pessoas felizes.
Aos poucos, Tolstoi foi se distanciando da aconchegante infância e passou a procurar uma forma mais perfeita de felicidade. Percebia, porém, o pouco que conseguia avançar. E, somente muito tempo depois, já velho, disse: “Se eu fizesse as pessoas, faria com que elas nascessem velhas e fossem, aos poucos, se transformando em crianças”. Palavras que só foram ditas depois de sete décadas tentando alcançar a felicidade terrena.
Em “Fuga do Paraíso”, o jornalista examina não só a partida de Tolstoi, mas também essa busca pelo paraíso, um projeto que para o escritor durou uma longa e próspera vida.
O problema não estava somente na morte precoce de seus pais, irmãos e filhos (inclusive de Vanetchka, o filho preferido). Foi na incompreensão dispensada inclusive pelas pessoas mais próximas que Tolstoi encontrou o maior obstáculo para a felicidade. O sentido da filosofia de Tolstoi foi deformado pelos seguidores mais devotados.
O escritor não gostava dos chamados “tolstoístas”, nos quais via fanáticos que seguiam tudo ao pé da letra e que contrariavam a essência do profundo sentimento espiritual que ele havia desenvolvido.
“Fuga do Paraíso” é um livro sobre como Tolstoi levou adiante, durante décadas de vida, não apenas a arte de ensinar, mas, principalmente, a de agir de acordo com as próprias convicções, de maneira justa e correta e com repetidos retornos a esse rumo.
Inacreditavelmente, o homem que tentou construir uma vida na base da bondade acabou considerado herege e excomungado pela Igreja Ortodoxa.
Para muitos, no entanto, a Igreja não excluiu Tolstoi de si, mas eliminou a si própria do escritor.
Em Iásnaia Poliana, Tolstoi estava aberto ao mundo, acessível a todo viajante, admirador, bandido ou miserável. Ao mesmo tempo, voltava-se cada vez mais a si próprio e, dando ouvidos à voz da alma, dolorosamente percebia com sofrimento toda e qualquer injustiça ou brutalidade. Iásnaia Poliana, onde ele nasceu, tornou-se seu porto seguro, seu refúgio, uma terra que lhe dava forças. Mas mesmo ali não encontrou a paz.
Sua obra literária se transformou em objeto de disputa entre sua família e seus discípulos. Sua fuga foi resultado de muitos anos de dúvidas e duras reflexões e, ao mesmo tempo, uma ação espontânea, não planejada. No livro, pode-se ouvir a voz do próprio Tolstoi — que duvidava, absorto na impiedosa autoanálise, poder tomar decisões impensadas. Ele nunca se esquivou da responsabilidade de seus próprios atos conscientes, por mais horríveis que lhe parecessem.
Sem forças para permanecer no centro das intrigas, deixou sua amada terra, para a qual retornou apenas quando morreu, em 20 de novembro de 1910. Foi enterrado no mesmo local onde, mais de 70 anos antes, tinha escondido o graveto verde da felicidade.
Sete anos mais tarde aconteceria a revolução de outubro e o lugar, como dizia batendo o pé seu irmão Vanetchka, se tornaria “todamundante”. Pena que não aconteceu como sonhou o grande humanista, inimigo de toda a violência, conde Lev Nikolaevitch Tolstoi.
Elaborado por Maria Azalina
Busto de Lev Tolstoi em Iásnaia Poliana, onde cresceu
Há exatamente cem anos, quando o conde Lev Tolstoi faleceu na estação de trem Astapovo, depois de fugir de casa e da família, o acontecimento logo virou assunto comentado no mundo todo – e ninguém tinha twitter ainda. Para relembrar e homenagear o escritor que influenciou Mahatma Gandhi e James Joyce, entre tantos outros, preparamos uma lista com cinco dicas para você:
01 Ressurreição.
Aproveite para ler a nova tradução do livro, lançada neste ano e traduzida diretamente do russo por Rubens Figueiredo. Ed. Cosac Naify, 432 páginas, R$ 79.
02 Tolstoi na tela.
Já nos idos de 1900, quando se realizam as primeiras exibições de cinema, o conde foi alvo dos primeiros cineastas, que fizeram diversas filmagens do autor. Muitas delas estão disponíveis, acredite, no YouTube. Confira.
03 Guerra e Paz.
No ano passado, a editora disponibilizou na internet o primeiro capítulo da tradução de Rubens Figueiredo, que será lançada só em 2011 (www.cosacnaify.com.br). Para completar, renda-se à clássica montagem americana para o cinema de 1956, com Audrey Hepburn no papel de Natasha.
04 A última estação (2009).
Baseada no livro homônimo de Jay Parini (Ed. Record, 416 páginas, R$49), a coprodução entre Rússia, Alemanha e Inglaterra resultou num filme que retrata os últimos dias de vida de Tolstoi. A produção está prevista para entrar em cartaz no Brasil a partir de janeiro de 2011.
05 Anna Kariênina.
Além da nova tradução feita diretamente do russo, também por Figueiredo, para a Cosac Naify (816 páginas, R$99), vale a pena rever a versão para o cinema, de 1935, com Greta Garbo (e ignorar remakes para a televisão). Incrível como as estrelas de Hollywood se renderam ao conde!
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