Presença de seguranças particulares da Rússia aumentou significativamente na região... /Foto: Ury Kozyrev(3)
Do mosteiro “Nôvi Afon” é possível ver barcos militares russos de patrulha de alta velocidade guardando a costa do mar Negro da Abecásia. É um sinal de que essa república autônoma na região do Cáucaso, que sempre atraiu o interesse de impérios, do romano ao soviético, ainda é território contestado.
Em 2008, depois da guerra entre a Rússia e a Geórgia, este enclave montanhoso, coberto de natureza subtropical selvagem e pontuado por praias paradisíacas, teve sua indepência reconhecida por Moscou. Desde então, pouco se importou com o fato de que apenas a Nicarágua, a Venezuela e um minúsculo ponto no Oceano Pacífico, a nação-ilha de Nauru, apoiaram a decisão. Sob a ótica europeia e norte-americana a região ainda é um território soberano georgiano.
Foram necessários apenas dois anos para que a Rússia estabelecesse sua presença militar e comercial na Abecásia. E, até hoje, milhares de soldados e oficiais da Agência de Segurança Federal ainda ocupam as dependências recém-pintadas da base de Gudauta, um edifício de três andares localizado no litoral norte da região. Um moderno sistema de defesa aérea, com mísseis S-300, também funciona na base de Gali. Caminhões cor laranja com emblemas militares levantam poeira dia e noite enquanto transportam areia e cascalho para as instalações militares na fronteira com a Geórgia.
... e bases militares russas abrigam milhares de soldados
“Nada de fotos ou a gente atira”, grita um militar parado diante de um trem carregado de tanques e veículos blindados nos arredores de Gudauta.
A vigilância parece ameaçadora, mas para alguns abecásios o cenário de dominação é exatamente de que necessitam. É sinal de bondade e proteção russas. “Chamavam a gente de buraco negro. Agora, a gente é abraçado pelos maiores investidores russos e por figuras poderosas”, explicou o chefe da administração regional de Gagra, Astamur Ketsba.
A região dissidente, que ocupa uma área de 8,6 mil km², tornou-se isolada e decadente desde a rápida e sangrenta guerra contra as forças georgianas em 1993. Até pouco tempo atrás, era conhecida como um “conflito congelado” pós-soviético, ou seja, uma região separatista que não faria mais parte da Geórgia, apesar das reivindicações, mas também não seria independente. Era uma espécie de território no limbo.
Abandonados e sem manutenção, os telhados dos graciosos palácios do século 19 do Príncipe Oldenburg eram castigados pela chuva e pela neve. As brancas estátuas de mármore e os lagos redondos no jardim botânico ao longo da orla marítima de Gagra eram dominados pelo musgo. Hoje, as autoridades locais fazem de tudo para que os russos comprem e restaurem os imóveis danificados, antigos e modernos.
O presidente russo Dmítri Medvedev, que recentemente visitou a região, e o primeiro-ministro Vladímir Pútin prometeram canalizar bilhões de dólares para dar apoio à independência local, impulsionando a economia e fortalecendo a infraestrutura e o poderio militar.
Além disso, tanto Pútin quanto o recentemente demitido prefeito de Moscou, Iúri Lujkov, estão investindo em projetos particulares na região. O primeiro-ministro supervisiona a reconstrução do balneário de Pitsunda, na costa do mar Negro, famoso por seus pinheiros centenários e pelos resorts que atraem muitos turistas na temporada de verão. A influência é tanta que os habitantes apelidaram o local de “Putin City”. Já Lujkov, colocou US$ 70 milhões em uma nova construção nos arredores de Gagra, que, inevitavelmente, foi chamada de “Projeto Moscou”.
Propriedades em balneários turísticos estão na mira de empresários russos
Ainda assim, nem todos os abecasianos se deixam levar pelos investimentos e vestígios deixados pelos russos. A arquiteta Tamara Laksba, por exemplo, é uma feroz defensora dos encantos provincianos de Gagra e Pitsunda e teme que a região venha a ser engolida pelo gigante vizinho.
Segundo ela, nos dois últimos anos, a experiência foi de “viver na linha de frente”. Ela se refere não ao combate aos georgianos, mas aos ansiosos executivos russos que planejam construir na costa abecasiana prédios com alguns andares a mais do que a lei permite.
“Quando cortarem o primeiro cedro centenário ou construírem acima dos três andares permitidos em Gagra, toda a população sairá às ruas para protestar”, afirma.
Os interesses da Rússia na Abecásia, entretanto, vão muito além de balneários e edifícios de apartamentos. A companhia de petróleo Rosneft, uma importante estatal russa, por exemplo, montou um escritório na capital Sukhumi e anunciou o investimento de US$ 32 milhões em pesquisas geológicas ao largo da costa do mar Negro.
“Nós nos sentimos seguros. Nós nos sentimos muito bem na Abecásia”, afirmou o principal porta-voz da Rosneft, Vladímir Voevoda, ao comentar as atividades da companhia na região.
Depois de a secretária de Estado norte-americana Hillary Clinton visitar a capital georgiana Tbilisi e afirmar que a Abecásia é um "território ocupado", houve quem defendesse as autoridades russas. O proprietário da El Petroleum, Serguei Klemantovich, sugeriu que Moscou simplesmente ignore as críticas às intervenções.
O próprio Klemantovich, que explora pedregulhos na Abecásia e exporta ferro-velho do porto de Sukhumi para a Europa, ignora os protestos da Geórgia. Em 2009, ele teve um navio com 20 toneladas de carga confiscado por patrulhas marítimas georgianas, mas voltou a exportar neste ano, confiante na proteção vinda da Rússia. “As bases militares russas vieram para ficar e oferecem segurança para nós”, ressaltou.
“Em breve, a fronteira entre a Rússia e a Abecásia será tão insignificante quanto aquela entre a Rússia e a Bielo-Rússia”, afirmou o presidente da comissão para antigos Estados russos na Câmara dos Deputados, Konstantin Zatulin, em uma tentativa de mostrar aos investidores russos que eles podem se sentir confiantes em relação à parceria.
No entanto, a insinuação de que o país está se tornando um vassalo da Rússia deixa parte da população revoltada.
O ministro da Defesa da Abecásia, general Mirab Kishmaria, faz questão de dizer que, junto com outros oficiais, derramou sangue para conquistar a independência do Estado. “Os deputados russos, por mais que tentem, nunca vão ver o dia em que a Abecásia eliminará seu exército independente”, afirmou.
Kishmaria diz que aprecia todo o equipamento militar que recebeu da Rússia e a crescente presença de soldados russos na região, mas promete ampliar o exército abecásio. “Aqueles que querem desmilitarizar a Abecásia não estavam aqui durante a guerra, não sabem que o nosso povo é uma irmandade de guerreiros”, disse.
A chegada de tantas tropas e seguranças russos e o corte de pessoal abecásio protegendo as fronteiras provocou certa tensão na região.
O coronel Lavrenti Mikvabia, por exemplo, que há anos patrulha a fronteira de Gali com a Geórgia, afirma que os guardas de fronteira foram demitidos e substituídos por milhares de soldados do Serviço Federal de Segurança (FSB) da Rússia.
Segundo o coronel, os oficiais estão ressentidos e alarmados porque ouviram dos russos que em breve já não haverá mais nenhum abecásio nessa função.
“Eles estão cometendo um enorme e insensato erro ao retirar os militares abecásios de nossa própria fronteira”, criticou Mikvabia. “Com isso, os russos mostram que não têm nenhum respeito por nós. Esta é a minha terra, posso defender este lugar melhor do que qualquer soldado russo, se for preciso.”
Em Tbilisi, as autoridades também estão descontentes e o presidente da Geórgia, Mikhail Saakashvili, mandou suas agências governamentais fazerem um levantamento das propriedades georgianas vendidas aos russos pelos abecásios.
“Quero dar um aviso a alguns russos imprudentes: vocês estão comprando ilegalmente casas na Abecásia, em território georgiano ilegalmente ocupado”, declarou Saakashvili.
O ministro para a reintegração étnica da Geórgia, Temur Iakobashvili, declarou à Gazeta Russa que 500 mil pessoas desalojadas pelo conflito de 1993 ainda vão reclamar suas propriedades na Abecásia um dia.
“Pútin, Lujkov e a Rosneft estão infringindo a lei georgiana ao trabalharem em território ocupado nosso”, afirmou Iakobashvili.
O primeiro-ministro da Abecásia defendeu o auxílio militar e econômico de Moscou e negou ocupação pelo vizinho em entrevista à Gazeta Russa.
Francisco Martinez, especial para Gazeta Russa
-As ruas da Abecásia estão cheias de cartazes sobre os 200 anos de relações com a Rússia. O senhor não acha que isso confirma que a região está ocupada por Moscou?
-Isso não é verdade. O parlamento russo reconheceu nossa independência. O exército russo pode permanecer em nosso território para garantir a segurança, inclusive mantendo suas bases militares. Mas quem achar que isso é ocupação também deve achar que muitos países europeus são ocupados pelos Estados Unidos.
-Quais são as suas prioridades hoje?
-Segurança, é claro. Depois disso, o reconhecimento internacional. Agora que a Rússia garante nossa estabilidade, podemos nos concentrar no desenvolvimento econômico e tentar atrair investimentos internacionais.
-O senhor espera que outros países reconheçam a Abecásia em breve?
-Estamos trabalhando para isso em diversas regiões, principalmente na América Latina, no Oriente Médio e nos países da área do Pacífico. Além disso, estamos desenvolvendo boas relações com a União Europeia, mas com alguns desses a cooperação é mais difícil, pois são membros da OTAN, que é a favor da Geórgia e está sob grande influência dos Estados Unidos.
-Há diferenças entre a independência da Abecásia e a de Kosovo?
-A Abecásia tem mais direito à independência do que Kosovo. Ao contrário deles, nós libertamos nosso território por conta própria. Em Kosovo foi tudo feito pela OTAN. Além disso, no último milênio nós fomos um Estado no Cáucaso, o mais poderoso da região. Kosovo, pelo contrário, sempre foi um território de trânsito reivindicado pela Sérvia e pela Albânia.
-O que está sendo proposto à Geórgia atualmente?
-Atualmente nossos contatos com Tbilisi se resumem à busca de coexistência pacífica e à promoção das relações de boa vizinhança, além de mantermos negociações em Genebra. Mas nosso povo lembra bem de nossas fábricas e vidas destruídas. Nosso povo estava sendo assassinado e ninguém ligava para isso. Hoje estamos provando ao mundo que podemos nos desenvolver economicamente e de modo democrático. Realizamos eleições transparentes, o que foi testemunhado por muitos observadores internacionais.
-A maior parte dos investimentos estrangeiros na Abecásia tem origem russa…
-Os empresários russos são bem-vindos aqui. Aguardamos, porém, os investidores europeus, mas a falta de reconhecimento oficial nos prejudica. Os primeiros representantes do mercado internacional, entretanto, já estão chegando ao país. São companhias de turismo austríacas e turcas. Ancara é o nosso segundo maior parceiro comercial, depois de Moscou. Hoje 80% do nosso comércio é feito com a Rússia.
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