Varlám Chalámov (Foto: A.Less/TASS)
Varlám Chalámov (1907-1982) escreveu, durante 20 anos, uma enorme coleção de contos curtos intitulada “Contos de Kolimá” baseado em sua experiência na gulag, ou seja, campos de trabalho forçado soviéticos.
Chalámov passou dois períodos nesses campos, de 1929 a 1932 e de 1943 a 1951. A primeira vez, ficou no norte dos Urais, e a segunda, em um lugar bem pior: Kolimá.
Lá, em 1949, depois de conseguir escapar do trabalho pesado para ser auxiliar médico em um hospital para os presos, começou a escrever a poesia que se tornou base dos futuros Contos de Kolimá.
Soljenítsin, que os leu em um samizdat em 1956, lembrava-se de ter “tremido como se eu tivesse encontrado um irmão”. Borís Pasternak, da mesma maneira, levava os Contos de Kolimá em alta conta.
No Brasil, a coleção saiu em cinco tomos pela editora 34, que conjugou um esforço colossal de oito tradutores para vertê-la diretamente do russo (Francisco de Araújo, Daniela e Moissei Mountian, Marina Tenório, Cecília Rosas, Lucas Simone, Denise Sales e Elena Vasilevich).
Os trechos seguintes são do primeiro tomo, vertido por Denise Sales e Elena Vassilevich:
1. De “Os carpinteiros”, pp. 39-40:
“Mas o frio não diminuía e Potáchnikov compreendeu que não podia mais suportar. O café da manhã rendia uma hora de trabalho, no máximo, depois vinha o cansaço, e o frio penetrava o corpo até os ossos — essa expressão popular estava longe de ser só uma metáfora. Restava apenas sacudir a ferramenta e trocar de perna aos saltos para não se congelar antes do almoço. O almoço quente, a famigerada iuchka e mais duas colheres de mingau, pouco ajudava a recobrar as forças, mas pelo menos esquentava. E de novo as forças para o trabalho duravam uma hora, e então Potáchnikov era tomado pelo desejo ora de se aquecer, ora de simplesmente deitar sobre as pedras congeladas espicaçantes e morrer. Por fim o dia terminava e, após o jantar, depois de tomar água com o pão que nenhum trabalhador comia no refeitório, junto com a sopa, mas sempre levava para o pavilhão, Potáchnikov ia dormir no mesmo instante.
Ele dormia, é claro, nas tarimbas de cima; embaixo era um sótão gelado, e aqueles que ficavam embaixo passavam metade da noite plantados junto do fogão — um fogão meio quente —, abraçando-o alternadamente com as mãos. Nunca havia lenha bastante: para buscar lenha precisavam andar uns quatro quilômetros após o trabalho e esquivavam-se dessa responsabilidade por todos os meios. Em cima era mais quente, embora, é claro, dormissem como trabalhavam — de chapéu, telogreika, buchlat e calças de algodoim. Em cima era mais quente, mas também lá, de noite, os cabelos congelavam-se e grudavam no travesseiro.
Potáchnikov sentia que, a cada dia, suas forças diminuíam mais e mais. Homem de trinta anos, ele tinha dificuldade de trepar nas tarimbas de cima e de descer delas. O vizinho morrera na véspera, simplesmente morrera, não despertara, e ninguém se interessou em saber de que morreu, como se o motivo da morte fosse sempre o mesmo, bem conhecido de todos.”
2. De “De noite”, pp. 35-6:
“— Você é médico, por acaso? — perguntou Bagrietsov, chupando o sangue.
Gliébov ficou calado. O tempo em que fora médico parecia muito distante. Aquele tempo existira realmente? Com frequência, o mundo além das montanhas, além dos mares, parecia-lhe uma espécie de sonho, de invenção. Real era o minuto, a hora, o dia, desde a alvorada até o toque de recolher; além desse ponto ele não planejava e não encontrava forças dentro de si para planejar. Assim como todos.
Ele não conhecia o passado das pessoas que o cercavam, não se interessava por isso. Aliás, se amanhã Bagrietsov anunciasse ser doutor em filosofia ou marechal da aviação, Gliébov acreditaria nele sem pensar. E ele, será que fora médico algum dia? Havia perdido não apenas o automatismo da reflexão, mas também o automatismo da observação. Gliébov viu que Bagrietsov chupava o sangue do dedo sujo, mas não disse nada. Isso apenas roçou sua consciência, mas ele não conseguiu encontrar, e nem buscou, força de vontade para responder.”
Dneprovski, um dos poucos campos da gulag de Kolimá ainda existentes. De 1941 a 1955, havia uma mina de estanho onde trabalhavam prisioneiros comuns e ex-prisioneiros de guerra soviéticos (Foto: Emil Gataullin)
3. De “Chuva”, p. 57:
“Durante a noite não conseguíamos secar os nossos buchlat; as camisetas e as calças enxugavam no próprio corpo, ficavam quase secas. Faminto e irritado, eu sabia que nada no mundo me faria cometer suicídio. Foi bem nessa época que compreendi a essência do grandioso instinto de sobrevivência, qualidade dada ao homem em alto grau. Eu via como nossos cavalos esgotavam-se e faleciam; não posso me expressar de outro modo, usando outros verbos. Os cavalos não se distinguiam em nada das pessoas. Faleciam por causa do norte, do trabalho além das forças, da comida ruim, das surras, e, embora tudo isso fosse dado a eles mil vezes menos do que às pessoas, faleciam antes. Então compreendi o principal: o ser humano tornou-se ser humano não porque é uma criatura de Deus e não porque tem um polegar em cada mão, mas sim porque é fisicamente mais forte, mais resistente do que todos os animais e, depois, porque conseguiu colocar seu princípio espiritual a serviço de seu princípio físico.”
Foto oficial de Varlám Chalámov de seu arquivo pessoal no NKVD após detenção. 1937 (Foto: Arquivo)
4. De “Ração seca”, pp. 69-70:
“Estávamos todos cansados da comida do pavilhão, ficávamos sempre à beira do choro quando chegava a sopa, em caixas de descarga de zinco sustentadas por varas. Ficávamos à beira do choro com medo de que a sopa fosse rala. E, quando acontecia um milagre e a sopa era grossa, nem acreditávamos; contentes, tomávamos tudo bem devagarinho. Mas mesmo depois da sopa grossa, sentíamos um ardor intenso no estômago mais aquecido: muito tempo sem comer. Todos os sentimentos humanos, amor, amizade, inveja, generosidade, misericórdia, sede de glória, honestidade, desapareciam junto com a carne que perdíamos ao longo do jejum prolongado. Na camada muscular insignificante que ainda restava sobre nossos ossos, que ainda nos dava a possibilidade de comer, de nos mover, respirar, cortar lenha, pegar a pá e jogar pedras e areia no carrinho de mão e inclusive de empurrar o carrinho pela interminável trilha de madeira até a galeria da mina de ouro e pela estreita estrada de madeira até o equipamento de lavagem, nessa camada muscular acomodava-se apenas raiva, o sentimento humano mais duradouro.”
5. De “Ração seca”, pp. 80:
“— Quer saber? — disse Savielev. — Vamos sonhar. Sobrevivemos, voltamos para o continente, envelhecemos rapidamente e viramos uns velhos doentes: ora as pontadas no coração, ora as dores do reumatismo não dão descanso, ora o peito começa a doer; tudo o que estamos fazendo agora, o modo como vivemos os anos da juventude, as noites sem dormir, o trabalho pesado muitas horas seguidas, as galerias de minas de ouro infiltradas de água gelada, o frio do inverno, os açoites dos guardas da escolta, tudo isso não vai passar sem deixar suas marcas, isso se continuarmos vivos. Vamos adoecer sem saber o motivo da doença, vamos gemer e viver em enfermarias. O trabalho acima das forças deixará em nós feridas incuráveis, e toda nossa vida e velhice será uma vida de dor, de interminável e variável dor física e espiritual. Mas, em meio a esses terríveis dias futuros, haverá também dias em que vamos respirar mais livremente, em que vamos nos sentir quase saudáveis e em que os nossos sofrimentos não vão nos inquietar. Esses dias não serão muitos. Eles serão tantos quantos forem os dias que conseguimos malandrar no campo de prisioneiros.”
Vista de Kolimá na atualidade, mais de 50 anos após Chalámov (Foto: Emil Gataullin)
6. De “Desenhos infantis”, p. 117:
“Depois do trabalho, não fomos nos aquecer. Há muito tínhamos notado um grande monte de lixo perto da cerca: algo que não se podia desprezar. Meus dois camaradas estavam acostumados e examinaram o monte inteiro com habilidade, retirando camadas de gelo sobrepostas. Pedaços de pão endurecido, uma bolinha de almôndega enregelada e meias masculinas rasgadas, foi o que conseguiram. O mais valioso, é claro, eram as meias; lamentei não ter sido meu o achado. Meias, echarpes, luvas, camisas e calças de homens ‘livres’, ‘civis’, têm grande valor para quem há décadas veste apenas peças de uniforme. As meias podem ser consertadas, remendadas: assim conseguíamos tabaco, pão.”
7. De “Cruz vermelha”, pp. 238-9:
“São incontáveis os delitos dos ladrões no campo de trabalhos forçados. Infelizes são os bons trabalhadores, dos quais o ladrão leva o último trapo, tira a última nota; e o trabalhador tem medo de reclamar, pois vê que o ladrão é mais poderoso do que a chefia. O ladrão surra o bom trabalhador e obriga-o a trabalhar — dezenas de milhares de pessoas são surradas pelos ladrões até a morte. Centenas de milhares, permanecendo no cárcere, são corrompidas pela ideologia da ladroagem e deixam de ser humanos. Algo de bandido assenta-se em sua alma para sempre; os ladrões e a sua moral deixam um rastro indelével na alma de todos para sempre.
Seguindo os passos de Varlám Chalámov: O vale congelado do rio Miakit (Foto: Emil Gataullin)
O chefe é grosseiro e cruel, o educador é mentiroso, o médico é inescrupuloso, mas tudo isso são bobagens em comparação com a força corruptora do mundo da bandidagem. De qualquer modo, são pessoas, mas neles raramente se manifesta algo de humano. Os bandidos, portanto, não são gente.
A influência da sua moral na vida do campo de prisioneiros não tem fronteiras, está em toda parte. O campo é inteiramente uma escola negativa de vida. Ninguém leva daqui nada de útil, nada de bom: nem o preso, nem o chefe, nem o segurança, nem as testemunhas involuntárias — engenheiros, geólogos, médicos —, superiores ou subordinados.
Cada minuto da vida no campo de prisioneiros é um minuto envenenado.”
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