Aleksiévitch na Flip: “É preciso achar o ser humano no ser humano. E não perder-se no caminho”
Fabricio Yuri VitorinoA estreia de Svetlana Aleksiévitch na Tenda dos Autores, como principal atração da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) em 2016, fez jus ao destaque. Cerca de mil pessoas lotaram a sessão para ver a ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura de 2015 falar sobre sua vida e obra. “Eu nunca ‘entrevisto’ ninguém. Eu apenas converso”, explicou a bielorrussa.
Seu estilo, batizado de “polifônico”, composto de uma colagem de relatos colhidos ao longo de anos, é montado sempre com um pano de fundo histórico. A 2a Guerra Mundial, a Guerra do Afeganistão, a explosão do reator de Tchernóbil e o fim da União Soviética são seus temas. E o ser humano – especificamente o “homo sovieticus” –, é seu herói. Nada mais justo que ouvir a própria Svetlana explicar sua forma de trabalho: a simplicidade. “É preciso achar o ser humano no ser humano. E não perder-se no caminho.”
Mas, como a escritora faz para colher dezenas, por vezes centenas, de depoimentos? “Eu uso um gravador. Com a caneta é impossível captar as pessoalidades, as peculiaridades de cada um. Todas essas impressões, barulhos, é preciso gravar tudo isso”, explica, antes de finalizar: “Eu costumo dizer que cada um deve gritar sua verdade.”
E, para a surpresa da plateia, ao contrario da maioria das mesas da história da Flip, pouco falou-se de temas como “crítica literária”, “estilística”, ou mesmo da Literatura, como ciência. Referências, somente a Dostoiévski. E foram raras. Aleksiévitch encantou o público ao falar de sua literatura viva, acessível a todos, fácil de ser lida, mas de mensagem poderosa. Seus causos deixavam as pessoas vidradas naquela senhora com pouco mais de sessenta anos, de voz baixa, que chegou e colocou a bolsa no chão, e estava completamente atrapalhada com o fone de ouvido.
Um deles, por exemplo, foi a história de uma das entrevistadas, pedida em casamento em Berlim imediatamente após a ocupação soviética, em 1945. “Ele chega para mim e pergunta ‘quer casar comigo?’ E eu queria bater nele..., e aí eu pergunto, ‘Mas como assim?’, e ela diz: ‘Não me deu flores, não me disse palavras bonitas, está sentado ali, sujo, cheio de sangue, e me fala em casamento? Faça primeiro de mim uma mulher, e depois me fale de amor!’ Quando eu percebo, ela está em lágrimas. ‘Meu Deus, eu nunca contei isso a ninguém, e por que eu contei isso para você?’”. Assim Svetlana termina sua lembrança. Como quem conta um causo para alguém – só que esse “alguém” são mais de mil pessoas.
E, sobre sua literatura, que não é ficção nem poesia, e é muito difícil de caber em rótulos, Svetlana é categórica: é preciso achar as testemunhas de nosso tempo. “O mundo ficou mais rápido, mais cosmopolita, as pessoas estão cientes de milhares de fatos. E o texto é algo fascinante.”
Tchernóbil, URSS e Minsk
No rol de seus assuntos mais fascinantes – e assustadores – está, sem dúvida, a tragédia de Tchernóbil. Para a Nobel de Literatura, é impossível dizer que Tchernóbil fica na Ucrânia, na Rússia, na Bielorrússia ou na União Soviética. “Nós vivemos num tempo que o mal não tem fronteiras. Eu andava por Tchernóbil e via os soldados com metralhadoras ao redor do reator e perguntava ‘para que vocês estão com as metralhadoras?’. Eles não sabiam”, lembra.
A escritora, que ficou exilada na Suécia, Alemanha e França, teve tempo de refletir sobre o fim da União Soviética e a situação da Bielorrússia, atualmente governada com mão de ferro por Aleksandr Lukachenko. “Nós sonhávamos em construir a liberdade. Mas a liberdade precisa ser construída todos os dias. Hoje sabemos que é um caminho longo, mas uma pessoa não pode sair do campo de trabalho forçado e, da noite para o dia, se tornar livre”, conclui.
De volta a Minsk, capital bielorrussa, Svetlana Aleksiévitch garante que não viver com medo do duro regime local. Segundo ela, nada é tão medonho quanto o conflito com o próprio povo. “Quando Lukachenko fala, o povo o ouve. Quando Pútin fala, o povo também o ouve. Quando eles falam das armas, da Grande Rússia, eles são ouvidos. Mas a nós, os artistas, ninguém ouve. Isso é o mais assustador”, admite.
Svetlana Aleksiévitch é simples. Fala com todos, autografa todos os livros com uma paciência infinita. Sempre começa as respostas com “bom, vocês sabem...”. E timidamente sorri ao menor sinal de palmas. Sua obra é uma coleção de relatos de pessoas reais. Como ela diz, que tomaram chá com ela, que sentaram na cozinha com ela (no melhor estilo russo). Ela tem noção de seu talento, de seu trabalho, e da importância que provavelmente tem para a literatura mundial, para as mulheres, para o mundo russo/bielorrusso/ucraniano e, sobretudo, para a História. Mas ela segue deixando claro, a cada gesto pequeno, a cada embaraço com o microfone, que é uma pessoa comum. Como nós. Como os relatos aos quais deu voz.
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