Premiado por "Vida e Destino", de Vassíli Grossman, Perpétuo se divide entre o jornalismo, a crítica musical e a literatura russa.
Marina Darmaros"O segundo colocado é o primeiro perdedor". Foi assim que Irineu Franco Perpétuo, 44, rebateu no Facebook uma felicitação pelo segundo lugar na categoria de Tradução do Jabuti, maior premiação da literatura nacional.
Mas não foi apenas a "alma russa" de Perpétuo - que, aliás, não tem qualquer ascendência eslava - que lhe rendeu a distinção. A tradução de "Vida e Destino", de Vassíli Grossman (1905-1964), tomou-lhe dois anos de dedicação e longas pesquisas.
"Subestimei muito o texto quando recebi, ainda em inglês, e disse que o faria em um ano. Quando o prazo terminou, o editor me perguntou em que pé eu estava. Do original russo, de 877 páginas, eu estava na 127. Lembro até hoje do e-mail, cheio de lágrimas, que recebi dele: 'Isso significa que o livro não sairá nunca'", conta, hoje aos risos, à Gazeta Russa.
Mas, com os problemas pessoais do primeiro ano superados, o "Guerra e Paz do século 20", como é apelidado o romance, não só saiu, como também levou Perpétuo na última quinta-feira (3) ao Auditório Ibirapuera para a cerimônia de entrega do 57° Prêmio Jabuti.
Insuficiência russa?
Em 53 anos - incluindo aí um hiato na premiação de traduções entre 1963 e 1978 - apenas dois títulos russos ocuparam primeiro lugar na categoria de Tradução do Jabuti: "A. P. Tchekhov: Cartas para uma Poética", excertos da correspondência do escritor vertidos para o português pela professora da USP já falecida Sophia Angelides, e "A Dama de Espadas", de Aleksandr Púchkin, traduzido por Boris Schnaiderman e Nelson Ascher.
Próximo à avenida Paulista, apartamento do tradutor é abarrotado de suvenires e relíquias culturais russo-soviéticas. Foto: Marina Darmaros
Poucas foram as obras também a ocupar outras posições: em 2012, a tradução de "Guerra e Paz", de Tolstói, rendeu 2° lugar a Rubens Figueiredo; em 2011, "Os Irmãos Karamazov", de Fiódor Dostoiévski, com tradução de Paulo Bezerra, ficou em terceiro lugar; a posição também foi ocupada em 2007 por "Indícios Flutuantes", de Marina Tsvetáieva, traduzido por Aurora Bernardini; e, em 2005, Paulo Bezerra alcançou o segundo lugar com "Os Demônios" de Dostoiévski.
John Milton, professor titular de estudos da tradução da USP que por três vezes fez parte do júri da CBL (Câmara Brasileira do Livro) - entidade que organiza o Jabuti - afirma que, ainda que vários professores da universidade tenham ganhado o prêmio e que línguas menos difundidas no país, como o árabe e o turco, tenham sido laureadas, é possível que não tenha havido, até os dias atuais, alguém que soubesse russo entre os jurados, o que poderia influenciar na escolha dos vencedores.
"O prêmio não é concedido pela precisão e qualidade da tradução, mas pela fluência, pela maneira que o tradutor conseguiu comunicar em português a obra original. Possivelmente, o júri sempre pensa dessa maneira e não tem habilidade para traduzir do russo, então deixa a língua de fora", disse à Gazeta Russa.
Ele acrescenta que, apesar de ter recebido da CBL os originais junto às traduções em edições anteriores, quando compôs o júri em 2014 isso não ocorreu com as cerca de 50 obras iniciais encaminhadas aos jurados.
As instruções do guia ao júri trazem três itens para serem priorizados na categoria: "precisão vocabular e conceitual (domínio do idioma na língua de chegada)"; "preservação do estilo do autor" e "correção e fluência de linguagem".
Segundo Milton, porém, com o inglês as coisas correm de forma um pouco diferente, e há sim algum cotejamento.
Bom senso
Se o prêmio preza primordialmente pela "fluência", Perpétuo defende que escolhas como a manutenção ou não da repetição, por exemplo, recorrente nos textos russos, deve ser balanceada.
"Tradução, em geral, é como a vida: tem um monte de regra, mas antes tem que vir a regra do bom senso. É preciso distinguir estilo do que o autor quer mesmo reiterar e das particularidades da língua. Por exemplo, tem palavras que não têm muitos sinônimos e outras, o contrário. Em 'Vida e Destino', Grossman usa umas três para dizer 'trem', e em português a gente só tem essa - não usamos 'comboio', como os portugueses, e para empregar 'composição' é preciso ter citado 'trem' antes, senão não faz sentido", explica.
Com provérbios, diz, ainda há a opção de se traduzir ao pé da letra, chamando uma anotação explicativa, ou utilizar expressão já estabelecida na língua de chegada que tenha a mesma finalidade.
Em um trava-línguas lançado por uma criança camponesa no romance premiado, por exemplo, Perpétuo valeu-se de "Qual é o doce mais doce que doce de batata doce?". "Doce e batata são elementos que têm a ver com essa realidade camponesa, por isso a escolha", explica.
Quanto se vai traduzir do russo para a língua de detino e quanto se manterá apenas transliterado é uma questão considerada eterna pelos tradutores da língua. Enquanto há palavras já sacralizadas por esses no original, como "samovar", outras ainda geram dúvida.
"Em momentos em que se cita a 'papakha', optei pela tradução como 'gorro alto de pele'. Mas em um trecho trágico de 'Vida e Destino', em que a mãe do soldado leva uma latinha de peixe 'shproti' para ele, o revisor sugeriu 'anchovas'. Bati o pé, porque nem da mesma espécie eles são. Se eu nunca tivesse comido o peixe, talvez fosse diferente...", diverte-se.
Poliglota
Fluente em sete línguas (português, espanhol, italiano, francês, inglês, alemão e russo), o tradutor conta que usou diversas traduções de Grossman para se direcionar. Além de checar, na versão vertida para o alemão, a grafia original dos abundantes nomes próprios alemães transliterados para o russo na obra, ele assistiu até a seriados baseados na obra para captar as sílabas tônicas de sobrenomes e nomes russos, questão que confunde os próprios conterrâneos de Grossman.
"Não acredito em inventar nada do zero. Mas as traduções que chequei tinham muitos problemas, porque o Grossman não foi preso, mas o livro sim. Então tinha cópias diversas escondidas, e elas eram levemente diferentes, o que criou lacunas", diz.
Mas um dos buracos verificados por Perpétuo em seus diversos cotejos pouco teve a ver com as cópias em microfilme vazadas para o Ocidente pelo Nobel Andrêi Sákharov, ou outras escondidas nos porões da União Soviética por trinta anos até sua primeira publicação: a versão em inglês fornecida inicialmente pela Alfaguara ao tradutor teve três páginas cortadas por escolha do tradutor.
Premiado com Jabuti, Perpétuo se divide entre o jornalismo, a crítica musical e a literatura russa Foto: Marina Darmaros
Perpétuo faz questão de mostrar a nota explicativa do corte: "Aqui, tomamos uma liberdade à qual não ter-nos-íamos permitido em qualquer outro lugar - a da condensação. Omitimos as próximas três páginas, que são levantadas por relatos um tanto embaçados e excessivamente generalizados de relações familiares infelizes", lê-se na edição inglesa.
"É inacreditável. Quem somos nós, tradutores, para decidir isso?", questiona Perpétuo.
Caminhos russos
Perpétuo passou a se dedicar ao "capricho adolescente" do russo em um curso da União Cultural Pela Amizade dos Povos - entidade fundada por intelectuais como Caio Prado Jr. ainda nos anos 1960 para fomentar as relações culturais Brasil-URSS.
Já na Folha de S.Paulo, no final da década de 1990, passou a aplicar o conhecimento da língua na redação do jornal. A primeira oportunidade foi em uma entrevista com o pioneiro tradutor Boris Schneiderman, depois, com um cineasta armênio em visita ao Brasil que só falava russo e armênio, e assim por diante.
"Grossman também era jornalista, e traz essa reportagem histórica de 'O inferno de Treblinka' - que, se fosse americana, seria chamada de 'new journalism'. Gosto de acreditar que nós temos isso em comum", arremata.
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