O dia mais terrível da história soviética

Ella (centro) foi evacuada com a mãe quando era ainda bebê; Mikhail seguiu para o fronte

Ella (centro) foi evacuada com a mãe quando era ainda bebê; Mikhail seguiu para o fronte

Arquivo pessoal
Apesar de 9 de maio ser a data mais celebrada do calendário russo, já que marca a vitória soviética na Grande Guerra Patriótica, foi o dia 22 de junho de 1941, quando a Alemanha nazista invadiu a URSS, que deixou uma impressão profunda na mente dos sobreviventes.

“Não tínhamos ideia de que seríamos invadidos. Os bombardeiros alemães começaram do nada. Eles nos pegaram totalmente desprevenidos. Pelo menos, depois daquele primeiro ataque, todos poderiam se preparar para a guerra. Mas não tínhamos tempo para isso. Só pudemos reagir depois que o turbilhão já havia nos tragado.” É assim que meu avô, Mikhail, costumava iniciar suas lembranças da guerra.

No início do conflito, ele estava na cidade de Lida, na parte ocidental da República da Bielorrússia, área por onde os alemães começaram os bombardeios. Ele era membro da divisão de aviação que então lutava para defender o que já tinha sido devastado pelos aviões inimigos. Muitos dos seus camaradas morreram.

Enquanto isso, minha avó, chamada Tamara, era evacuada com minha mãe, de dois meses de idade, envolta em um lençol branco. Todo mundo repetia a ela que cobrisse ou ocultasse a criança de modo que os pilotos alemães não conseguissem distinguir o lençol e, assim, não tivessem um alvo fácil.

Os civis eram transportados para o leste da União Soviética em trens, caminhões e ônibus. Ao ouvir os aviões se aproximando, saltavam para fora dos veículos e se escondiam debaixo de pontes ou em florestas. Bombas explodiam por toda parte. Cidades e aldeias estavam em chamas. O fim de tudo parecia a um piscar de olhos.

Minha avó e minha mãe passaram a maior parte da guerra nos Urais, sem receber qualquer notícia de meu avô por mais de um ano. Como todos os recursos nacionais dirigiam-se para os esforços de guerra, os civis viviam muitas vezes em condições terríveis. Minha avó doava sangue e, assim, recebia uma ração diária de meio litro de leite e 200 gramas de pão para ela e sua filha. Havia também aveia, batata e vegetais básicos, embora em quantidades irrisórias.

 Mikhail Foto: Arquivo pessoal
Tamara Foto: Arquivo pessoal
 
1/2
 

Depois da guerra, meus avós se fixaram em Moscou. Mikhail ocupou várias posições até conseguir um emprego no departamento editorial de uma publicação de comércio exterior, na década de 1960. Bom com as palavras, sua eloquência abriu muitas portas.

Quando emigramos para os Estados Unidos, o apoio incondicional dos dois foi elementar. Mas, mais do que isso, eles eram minhas raízes. As lições sobre a Revolução Americana na escola não eram tão cativantes como as narrativas do meu avô sobre a Revolução Russa. Ele tinha uma memória fenomenal e falava sobre a história soviética como um participante direto, com gosto e elegância – ele fazia a história ganhar vida. “Livros são importantes”, ele dizia, sorrindo, “mas é a experiência que forma o caráter”.

Sua preocupação era que eu pensasse por conta própria. Certa vez, porém, fiz com que ele experimentasse um pouco de seu próprio veneno. Estávamos falando sobre a guerra, e ele frisou que a URSS tinha lutado para derrotar o nazismo. 

“Mas, vovô”, eu respondi, “com todo o respeito, a URSS não estava lutando contra uma ideologia, ela estava lutando contra um exército invasor. O Kremlin não tinha nada contra essa ideologia antes da guerra, quando assinou acordos comerciais com os nazistas ou quando dividiu a Polônia com eles. Nem os Estados Unidos estavam lutando contra o hitlerismo. Washington não teve nenhum escrúpulo ao empregar milhares de cientistas nazistas depois da guerra. Não sabiam que Wernher von Braun, o principal engenheiro da Nasa que construiu os foguetes Saturno, tinha sido um oficial da SS (sigla em alemão para “Tropa de Proteção”) e visitava campos de concentração para selecionar trabalho escravo para seus projetos de mísseis? Guerras – de ontem, ou de hoje – são baseadas em interesses nacionais, independentemente das ideologias que os guiam. Ideologias não começam uma guerra, os seres humanos o fazem!”. Meu avô ficou um pouco perplexo, mas acenou com a cabeça em aprovação.

Meus avós viveram o resto da vida em Nova York. Tinham uma energia inesgotável, especialmente quando entravam em confronto. Aos 90 anos, Mikhail ainda era campeão indiscutível no levantamento de copos. Tamara, que na Rússia era vista como sósia de Liubov Orlova, a ‘Greta Garbo soviética’, parecia ter, pelo menos, 15 anos a menos do que sua verdadeira idade. “A tragédia da velhice consiste não no fato de sermos velhos, mas sim no fato de ainda nos sentirmos jovens”, repetia Mikhail, citando o escritor britânico Oscar Wilde.

Mikhail and Tamara in New York. Source: Personal archiveMikhail e Tamara em Nova York Foto: Arquivo pessoal

Este 22 de junho, 75 anos após o estopim da guerra na Rússia, é o primeiro em que eu não vou ouvir a minha avó falar sobre a evacuação, as bombas, a sujeira que caia sobre o lençol branco e em seu bebê. Ela faleceu há três meses, dois anos depois do meu avô.

Aqueles que não vivenciaram aquele momento, não importa quão expressivos sejam os relatos dos sobreviventes, jamais entenderão os horrores da guerra. No entanto, essas memórias devem ser mantidas vivas, pois, mesmo que não ensinem ao homem uma lição, irão, pelo menos, lembrar quem ele é.

Gostaria de receber as principais notícias sobre a Rússia no seu e-mail?   
Clique aqui para assinar nossa newsletter.

Todos os direitos reservados por Rossiyskaya Gazeta.

Este site utiliza cookies. Clique aqui para saber mais.

Aceitar cookies