Lei seca da Rússia completa cem anos

Imagem: Natália Mikhailenko

Imagem: Natália Mikhailenko

Escritor relata as consequências da proibição do consumo de vodca no país no início do século 20.

A lei seca norte-americana criou a sua própria mitologia, que se espalhou por todo o mundo, mas da lei seca russa poucas vezes se fala. É verdade que ela não ajudou a criar um mundo de pitorescos gângsters e contrabandistas de bebida, mas causou protestos e ataques a adegas.

Por decreto imperial, no dia 31 de julho de 1914, foi proibida na Rússia a venda e produção de álcool. A proibição deveria permanecer em vigor apenas durante o período da mobilização militar, já que a Rússia entrava na Primeira Guerra Mundial, mas logo a seguir ela foi estendida até o final dos combates.

Mais tarde, o direito de proibir o álcool passou do governo central para as autoridades locais: para as Dumas das cidades (câmaras municipais), os conselhos rurais e as congregações de camponeses. Então, algumas cidades e municípios autorizaram a comercialização de vinho e cerveja, mas a vodca continuava sendo expressamente proibida em todo o país. Os deputados camponeses da Duma Estatal (câmaras de deputados) apresentaram um projeto de lei para retirar o álcool "da livre circulação para todo o sempre". A lei "para todo o sempre" foi sabiamente derrubada, mas a proibição do álcool sobreviveu durante muito tempo e, depois da revolução de 1917, foi mantida pelos bolcheviques. A lei seca esteve em vigor na Rússia durante 11 anos.

Ato de heroísmo nacional

Segundo estatísticas do período, nem se bebia tanto na Rússia: cinco vezes menos do que na França e três vezes menos do que na Itália. No entanto, bebia-se quase exclusivamente vodca e em doses cavalares, que algumas vezes se revelavam mortais.

Durante a Guerra Russo-Japonesa, a embriaguez em massa entre os recrutas dificultou a mobilização, e a porcentagem de soldados com problemas psíquicos derivados da ingestão do álcool era consideravelmente grande. Na véspera de uma nova guerra, o czar percorreu as províncias do país. "Com profunda dor ele assistiu a tristes imagens da fraqueza do povo, da miséria da família e da agricultura abandonada - as inevitáveis consequências ​​da vida ébria", escreveu na época o historiador Serguêi Oldenburg.

No início de 1914, foi expedida uma ordem imperial para o Ministério das Finanças, com o objetivo de "melhorar a situação econômica do povo, sem temer os prejuízos financeiros", uma vez que as receitas no Tesouro devem vir da venda não daquilo que destrói "as forças espirituais e econômicas" da população, mas de outras fontes de riqueza mais saudáveis.

Isso foi um passo radical na direção da proibição do álcool, pois a receita da venda da vodca era nada mais nada menos do que um terço do orçamento do Estado. No ano de 1915, com o país já em guerra, a Duma elaborou o orçamento eliminando completamente este artigo do Tesouro. O político britânico Lloyd George descreveu isso como "o mais sublime ato de heroísmo nacional que eu conheço". A própria possibilidade de se permitir a recusa dessa receita mostra o enorme potencial econômico da Rússia naqueles anos.

 Animais mais felizes

Imediatamente após a introdução da sobriedade forçada começaram a ser realizados estudos estatísticos. Os resultados impressionantes foram publicados nos trabalhos do psiquiatra Ivan Vvedenski e do famoso médico Aleksandr Mendelson, entre outros. De acordo com eles, o número de crimes diminuiu várias vezes, os hospitais psiquiátricos ficaram vazios e o interior do país estava se transformando diante dos olhos do povo. Os agricultores não só retomaram a lavoura, compraram samovares, relógios e máquinas de costura, como ainda lhes sobrava dinheiro para economizar para o futuro.

Muitos dos que responderam às pesquisas disseram estar dispostos a pagar impostos adicionais para que o comércio do álcool não voltasse a ser permitido nunca mais. "Até mesmo os animais domésticos andam mais felizes", disse um dos entrevistados. Mas surgem então problemas inesperados: as escolas médicas se queixam da falta de cadáveres para estudos anatômicos. Antes, elas usavam os corpos dos suicidas, mas com a sobriedade daqueles dias ninguém mais tinha tanta facilidade para atentar contra a própria vida.

Os autores dos estudos também reconheceram a existência de consequências negativas da lei seca. A primeira delas foi o aumento dos alambiques de fabricação ilegal de aguardente no interior do país e o uso de bebidas de substituição (como álcool para limpeza e vernizes) nas cidades. Mas se acreditava que só bêbados inveterados e já no fim da vida conseguiam beber aguardente artesanal e esses produtos como substitutos da vodca.

A falta de álcool criava algumas dificuldades na vida cotidiana. Os casamentos sóbrios até agradavam a muitos, já que reduziam o custo da festa, mas, por exemplo, enterrar alguém sem vodca é absolutamente impensável na Rússia. Havia temores de que o tédio criado pela ausência da vodca poderia empurrar algumas pessoas para os jogos de cartas e a devassidão. Mas, no contexto do crescimento do bem-estar geral, os estudiosos propunham não dar importância especial a esses poucos fenômenos negativos.

 Verniz, protestos e cocaína

Nem tudo foi um mar de rosas. Só em agosto de 1914, 230 estabelecimentos de bebidas nas províncias russas foram alvo de protestos da população, que exigia vodca. Em alguns lugares, a polícia chegou a disparar contra os manifestantes. O governador de Perm apelou ao czar que permitisse a venda de álcool durante pelo menos duas horas por dia "a fim de evitar confrontos sangrentos". A mobilização também não correu tão bem quanto se esperava: as pessoas invadiam as adegas fechadas, eram reprimidos pelo exército e o número de mortos ultrapassou uma centena.

 

Durante a revolução, os ataques às adegas se tornaram uma prática comum: os bolcheviques tiveram que despejar no esgoto todo o conteúdo da adega do Palácio de Inverno, com garrafas que custavam milhares de rublos em ouro e coleções de vinhos muito caras, para que os soldados não tivessem acesso a essas bebidas. Devido ao fechamento das destilarias de vodca, quase 300 mil trabalhadores ficaram sem meios de subsistência e o Tesouro teve que lhes pagar indenização. O consumo de substitutos da vodca nas cidades tomou proporções monstruosas, a produção de vernizes aumentou dez vezes!

Relatos dos anos pré-revolucionários estão longe de uma graciosa sobriedade, mas antes denunciam uma rústica embriaguez geral. A aguardente era destilada a partir de tudo o que aparecia: desde serragem até beterraba e outras plantas forrageiras. A venda de destilados mais fortes era permitida nos restaurantes mais caros, o que irritava aqueles para quem esses lugares eram inacessíveis.

Além disso, a guerra e a lei seca geraram uma terrível onda de abuso de drogas, especialmente em São Petersburgo. Não fazia muito tempo que a cocaína e a heroína haviam deixado de ser vendidas livremente nas farmácias, e em 1915 gregos e persas estabeleceram o abastecimento de ópio à Rússia e a vinda de cocaína da Europa. 

A relação dos tempos

O governo soviético aboliu por completo a lei seca em 1925 – era preciso fundos para a modernização da economia. Existem testemunhos escritos do dia em que as destilarias começaram de novo a operar. De acordo com alguns deles, as pessoas saíram nas ruas chorando e se beijando de alegria. Segundo outros, também choraram, mas de medo e desespero.

Muita da realidade e da retórica daqueles anos coincide de modo a não se conseguir ver diferenças com a realidade e a retórica da campanha antiálcool da década de 1980, inspirada por Gorbachov [Mikhail Gorbachov, então líder soviético]. Descrições de casamentos sóbrios e debates de como isso era bom para as pessoas podem, sem nenhuma alteração, ser trazidos das páginas dos relatórios de 1914 para as páginas dos jornais de 1986. A principal semelhança está no fato de que, tanto em uma situação como na outra, pouco tempo depois de essas medidas antiálcool serem postas em prática, o regime político do país mudou.

Mikhail Butov: escritor, vencedor do prêmio Ruski Buker de literatura da Rússia

 

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