Choque de tradições com mundo moderno domina Festival de Cinema de Moscou

Alguns cineastas boicotaram evento por causa das ações russas em meio à crise na Ucrânia Foto: Iliá Pitalev/RIA Nóvosti

Alguns cineastas boicotaram evento por causa das ações russas em meio à crise na Ucrânia Foto: Iliá Pitalev/RIA Nóvosti

Conheça os diretores estrangeiros que apresentaram suas obras na capital.

A 36º edição do Festival Internacional de Cinema de Moscou, que chegou ao fim no sábado passado (28), relembrou as antigas edições do evento. “Nas décadas de 1970 e 80 chegavam a nós aqueles que não conseguiam mostrar seus filmes em outros locais. O festival apoiava movimentos alternativos e criadores talentosos”, disse à Gazeta Russa o diretor da associação dos críticos de cinema da Rússia, Andrêi Chemiakin.

No início de década de 1990, após o colapso da União Soviética, o festival perdeu esse enfoque e passou a ser dado destaque aos campeões de bilheteira, embora o Festival Internacional de Cinema de Moscou (FICM) não pudesse competir com os famosos eventos de Cannes ou Berlim.

Devido à atitude negativa em relação à Rússia, provocada pela crise na Ucrânia, muitos cineastas não compareceram ao evento neste ano. “E assim regressamos àquele modelo inicial. Até nós vêm apenas os diretores, atores e produtores que realmente amam a Rússia e o cinema russo”, concluiu Chemiakin.

O evento é o segundo mais antigo depois do Festival de Veneza. Entre os seus premiados no passado figuram estrelas do cinema mundial como Akira Kurosawa, Stanley Kramer, Frederico Fellini, Andrzej Wajda e Krzysztof Zanussi. 

Diálogo de culturas

“O que é uma pessoa feliz?”, questiona o documentarista francês Thomas Balmès em seu filme “Felicidade”, apresentado no programa “Livre Pensamento". O documentário filmado no Butão, país cujo rei permitiu a televisão e a internet apenas em 1999, traz é um menino de uma família de camponeses como personagem principal. Por não conseguir recursos para alimentá-lo, sua mãe o envia para um mosteiro budista.

Graças à imersão da equipe de filmagem na vida daqueles camponeses, o espetador começa a perceber que não existe uma receita para a felicidade. Felicidade são os simples prazeres da vida: as novas impressões de uma viagem feita à cidade para ir buscar o televisor, onde o menino vê, pela primeira vez, vitrines e o próprio televisor, através do qual, no final do filme, a aldeia inteira assiste com entusiasmo a um bizarro jogo de futebol.

“Eu me sinto próximo da compreensão do cinema documentário feito pelos diretores russos”, diz Thomas Balmès. “Na Rússia, o gênero do documentário permanece puro. Aqui os diretores se opõem à TV, que ameaça misturar os gêneros, ou se opõem à introdução de ideias políticas, propagandistas, como acontece na França.”

Tragédia X iPhone

No programa  principal do festival foi apresentado o filme “Timbuktu”, do cineasta mauritano Abderrahmane Sikkim. Nele, o diretor levanta questões de valores universais com base no exemplo trágico do destino de uma família de Timbuktu, executada pelos fundamentalistas islâmicos que chegaram ao poder.

“Quando essa tragédia ocorreu”, contou Sikkim, “estava sendo lançado o novo iPhone. E a mídia direcionou todas as suas atenções para fazer reportagens nas filas. O mundo inteiro se preocupava em saber quem seriam os sortudos a comprar os primeiros telefones. E da tragédia de Timbuktu ninguém falou. O meu dever, como diretor, foi o de recontar esse episódio.”

Embora sua origem remonte à África francófona, o diretor, que também é membro do júri do festival, pertence à tradição cinematográfica russa. Ele estudou no VGIK (Instituto de Cinema Russo, em Moscou), no final dos anos 1980 e início dos anos 90. Pelo filme “Outubro”, de 1993, sobre o amor de um jovem africano e uma garota russa, filmado nos arredores de Moscou, recebeu um prêmio no Festival de Cannes.

“Quando vim estudar na Rússia, eu não tinha qualquer bagagem cultural. Não tinha nenhum conhecimento profundo de arte – fosse pintura, dança, música ou cinema. E foi aqui que eu aprendi muito. Eu frequentava os teatros de Moscou, me alimentava de cultura russa.”

Exílios de Stálin

O tema muçulmano chegou também ao cinema russo. No âmbito do festival foi apresentado o filme “Ordem Para Esquecer”, sobre a deportação dos povos da Tchetchênia e da Inguchétia em 1944. O filme mostra a selvajaria da polícia de Stálin, reprimindo brutalmente os habitantes da aldeia de Hayrab.

No final da Segunda Guerra Mundial, o líder soviético ordenou o exílio massivo de alguns povos, fazendo recair sobre eles a culpa coletiva de colaboracionismo com os nazistas. Entre eles estavam os tchetchenos. Durante uma dessas operações, apenas em Hayrab foram 700 mortos.

Além do conteúdo apresentado, esta obra foi alvo de um grande escândalo, quando o Ministério da Cultura russo se recusou a conceder a licença de exibição. As autoridades justificaram que os fatos apresentados no filme não foram documentalmente comprovados. “Esse é um filme de ficção baseado em material histórico, nós trabalhamos com documentos de duas comissões governamentais – de 1957 e 1991”, rebate o diretor do filme, Hussein Erkenov.

Na estreia do filme no festival, o salão maior do cinema Oktiábr não tinha um único lugar livre – até mesmo as escadas foram ocupadas pelos espectadores.

Vida no Extremo Norte

Havia dois filmes russos no programa de competição – “Sim e Sim”, da polêmica diretora Valeria Gái Guermanika, sobre o amor estranho de uma professora e um artista louco; e “Musgo Branco”, produzido com base no romance da escritora Anna Nerkagui.

Tal como a “Ordem Para Esquecer”, sobre os tchetchenos, o segundo filme também está centrado em um pequeno povo da Rússia, os nenets, que vivem nas margens do Oceano Ártico.

Nele, é contada a trágica história de amor de um nenets por uma menina que renuncia ao estilo de vida nômade e parte para sempre para a cidade.  Por meio dessa história aparentemente despretensiosa, os autores do filme falam sobre o choque dos valores tradicionais com a civilização que se aproxima.

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