O homem que morreu para salvar a maior coleção de sementes do mundo

Vavilov sonhava com um futuro utópico em que as novas práticas agrícolas e a ciência poderiam criar super plantas em quaisquer condições.

Vavilov sonhava com um futuro utópico em que as novas práticas agrícolas e a ciência poderiam criar super plantas em quaisquer condições.

Divulgação
Em setembro de 1942, quando as forças nazistas cercaram Leningrado, cortando o fornecimento de comida para dois milhões de habitantes da cidade, um grupo de pessoas morreu de fome voluntariamente, apesar da abundância de alimentos.

Quando os nazistas entraram em Leningrado (atual São Petersburgo), os cientistas e os funcionários do Instituto da Indústria das Plantas construíram barricadas e se trancaram dentro do instituto.

Não estavam tentando salvar suas vidas, mas o futuro da humanidade. Tinham a difícil tarefa de proteger a maior coleção de sementes do mundo, tanto de cidadãos famintos soviéticos, como do exército invasor.

Apesar da fome e dos bombardeios constantes, os moradores de Leningrado continuavam resistindo.

Durante os 900 dias do cerco, esses heróis, um por um, começaram a morrer de fome. E nenhum deles tocou as sementes que defendiam, literalmente, com suas vidas.

Locais enfretaram dificuldades durante os dias do cerco a Leningrado na Segunda Guerra mundial

A cruel ironia não termina aqui. O geneticista e geógrafo russo Nikolai Vavilov, que criou essa coleção de sementes, acabou morrendo de fome em uma prisão soviética em Saratov.

Semeando o futuro

Vavilov visitou cinco continentes para estudar os ecossistemas globais de alimentos. Ele chamou isso de "uma missão para toda a humanidade". Também realizou experimentos genéticos agrícolas para aumentar a produção das culturas. Mesmo quando a Rússia estava dividida entre revoluções, anarquia e fome, Vavilov armazenou sementes no Instituto da Indústria das Plantas.

Ele sonhava com um futuro utópico em que as novas práticas agrícolas e a ciência poderiam criar super plantas em quaisquer condições e acabariam com a fome em todo o mundo.

"Foi um dos primeiros cientistas que realmente escutou os camponeses e tentou entender porque eles acreditavam que a diversidade de sementes era importante para seus campos", diz o etnobiólogo Gary Paul Nabhan.

O bode expiatório de Stálin

Vavilov propôs aumentar a produtividade agrícola para erradicar a fome na Rússia. Anteriormente, ele tinha defendido as teorias de Mendelian, que afirmaram que os genes passavam ​​inalterados de geração em geração. Assim, ele tornou-se o principal adversário de cientista favorito de Stálin, o ucraniano Trofim Lisenko.

 Trofim Lisenko

Lisenko rejeitou a genética mendeliana e desenvolveu um movimento pseudocientífico chamado Lisenkismo.

Suas teorias sobre melhorias nas culturas de cereais ganharam o apoio de Stálin no início dos anos 30. 

O ucraniano Trofim Lisenko (esq.) era o cientista favorito de Stálin (dir.)

A influência de Lisenko sobre Stálin chegou ao ponto de ser proibido por lei em 1948 negar suas teorias sobre a herança genética adquirida do ambiente.

A coletivização stalinista de fazendas privadas provocou uma queda nas colheitas na União Soviética. O ditador precisava de um bode expiatório para esse fracasso e para a fome resultante. Stálin escolheu Vavilov.

De acordo com a opinião tendenciosa de Stálin, Vavilov foi responsável pela escassez, porque seus procedimentos para selecionar os melhores exemplares de cada planta levaram muitos anos.

Vavilov foi detido pelos serviços secretos. No meio do caos da Segunda Guerra Mundial, ninguém, nem sua esposa e filho, sabiam onde ele estava.

Mesmo antes de ser detido, Vavilov se recusou a negar suas convicções

O autor Geoff Hall escreve no livro “Lendo Nikolai Vavilov”:

“Antes do julgamento público, a polícia de Stálin, em busca de uma confissão, realizou 1.700 horas de interrogatórios brutais em 400 sessões. Algumas sessões duraram 13 horas e foram dirigidas por um oficial conhecido por seus métodos extremos.”

Antes da detenção, durante a ascensão da influência de Lisenko, Vavilov, ao contrário de Galileu, se recusou a repudiar suas convicções, dizendo: "Vamos para a pira, vamos nos queimar, mas não vamos nos recusar das nossas convicções."

"Depois de 18 meses comendo repolho congelado e farinha mofada, ele morreu de fome", diz Nabhan. "O homem que nos ensinou tudo sobre de onde vem a nossa comida e que trabalhou durante 50 anos para acabar com a fome no mundo morreu de fome no Gulag soviético."

Em 1943, os nazistas ainda estavam em Leningrado. Uma dúzia dos cientistas que trabalharam com Vavilov, refugiados nos porões secretos do instituto, morreram de fome guardando o seu tesouro de mais de 370 mil sementes.

"Um deles disse que era difícil acordar-se, levantar-se e vestir-se de manhã, mas não foi difícil proteger as sementes" diz Nabhan. "Salvar as sementes para as gerações futuras e ajudar todo o mundo a se recuperar após a guerra era mais importante do que o conforto de uma única pessoa."

O legado de Vavilov

Após 25 anos de dominação da biologia soviética de Lisenko, a maioria de sementes de Vavilov se tornaram inutilizáveis: o escritor russo Guennádi Gôlubev escreveu em 1979 que "80% de todas as áreas de cultivo ​​da União Soviética são semeados com variedades derivadas das coleções de Vavilov".

Vavilov realizou 115 expedições para 64 países, inclusive Afeganistão, Irã, Taiwan, Coreia, Espanha, Argélia, Palestina, Eritreia, Argentina, Bolívia, Peru, Brasil, México e EUA, para coletar sementes de diferentes cereais e seus ancestrais selvagens. Com base em suas observações, biólogos modernos são capazes de documentar as mudanças na paisagem geográfica e cultural e os padrões de cultivo de cereais nessas áreas.

Instituto da Indústria das Plantas 

Rafael J. Routson, do Departamento de Geografia e Desenvolvimento Regional da Universidade do Arizona diz: "Vavilov fez um trabalho científico que ainda pode ser usado para avaliar as correlações entre o clima e culturas, ele descreveu padrões geográficos em diversidade das culturas."

De acordo com o geneticista russo Iliá Zakharov, Vavilov foi "uma pessoa de energia inesgotável e de eficiência incrível". Em 2005, em um artigo para “Journal of Bioscience”, Zakharov escreveu:

O trabalho científico de <span>Vavilov</span> ainda pode ser usado para correlacionar clima e culturas

"Durante a sua vida relativamente curta, ele realizou uma quantidade surpreendente de trabalhos: viajou para praticamente todos os países do mundo, formulou postulados muito importantes na genética, escreveu mais de dez livros e realizou a gigantesca tarefa de organizar um sistema de instituições agrícolas da União Soviética."

Nabhan falou com um agricultor na Etiópia que disse que Vavilov tinha "uma incrível capacidade (...) para identificar áreas de grande diversidade".

Um agrônomo na Cazaquistão, que quando menino mostrou a Vavilov florestas de maçãs selvagens, disse que “ele descobriu tudo em um dia só. Ele sempre disse ‘O tempo é curto, há tanta coisa para fazer’”.

Se o grande cientista não tivesse morrido tão cedo, a União Soviética jamais teria sofrido más colheitas. As ineficiências crônicas da agricultura nacional desempenharam um papel extremamente importante durante a guerra no Afeganistão e, no final, na queda de todo o sistema soviético.

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