Foto: arquivo histórico
Aleksandr Púchkin foi o primeiro a descobrir a Crimeia para si próprio. Verdade se diga que não por vontade própria. Foi exilado de São Petersburgo para o sul do império devido às suas poesias exortando a liberdade. No entanto, das duas uma: ou ele era incorrigível ou os ares da Crimeia lhe deram ainda mais forças. “Meus sentidos ressuscitaram, minha mente se aclarou”, escreveu ele.
A principal descoberta de Púchkin na Crimeia foi a poesia de Ovídio. Ele soube que o seu congênere romano fora deportado para a mesma região e também por capricho de outro imperador déspota. Púchkin compara seu exílio ao destino do poeta da Antiguidade. Nas obras poéticas escritas na península, continua a exaltar a liberdade, mas agora entendida como libertação da opressão do poder.
Outra personalidade da Crimeia livre foi Maximilian Volochin, poeta e pintor que fundou uma comunidade artística. Sua casa em Koktebél era a Meca da intelectualidade russa dos inícios do século 20. Marina Tsvetáeva, Ossip Mandelstám, Andrêi Beli, Górki, Aleksêi Tolstói: essa é uma lista, ainda que incompleta, dos seus convidados habituais.
Volochin incutia simplicidade e naturalidade na boêmia russa. Fazia com que seus hóspedes recusassem os formalismos que limitavam a criatividade e em sua presença trajava um robe, para dar o exemplo. Sua porta estava aberta para todos, fossem quais fossem seus cargos ou orientações políticas. Mesmo durante a guerra civil, Volochin se manteve fiel a seus princípios, escondendo tanto “brancos” dos “vermelhos”, como “vermelhos” dos “brancos”.
O clima agradável da Crimeia e a receção calorosa da comunidade curavam os poetas dos bloqueios criativos. Volochin foi um verdadeiro guru literário para a poetisa Marina Tsvetáeva. Ele lhe ensinou a confiar no leitor e a libertar a imaginação. Foi com seu apoio que ela se libertou da visão do mundo livresca, começando a escrever com maior simplicidade e rigor.
Tsvetáeva visitou lugares puchkinianos, como Bakhchisarai e Ialta. Em seu poema “Encontro com Púchkin”, ela se imagina passeando com o “mago de cabelo encaracolado”. Tsvetáeva conversa com o gênio como se fossem conhecidos, encontrando muito em comum em suas vidas. À semelhança de Púchkin, também ela não gostava do “guia” e não abria mão da liberdade individual.
O escritor Aleksandr Grin, outro amigo de Volochin, se mudou para a Crimeia por razões de saúde, nos anos 30. Grin era um notável escapista, evitando a comunidade para se refugiar na solidão. Sua grande fonte de inspiração era o mar. Na Crimeia, escreveu sua grande obra: “A Que Corre sobre as Ondas”, uma história de um sonhador doente, curado pelo amor e viagens. Grin foi sepultado numa colina da cidade de Velha Crimeia, de onde se avista o mar.
Catástrofe real
Durante a Guerra Civil, a Crimeia foi o último bastião do Exército Branco a cair. De seus portos partiam fugitivos da Rússia: cientistas, artistas, escritores. Os bolcheviques alcançaram a vitória final em 1920, ano também marcante para a literatura russa.
Em “A Fuga”, peça de Mikhail Bulgakov, se refletem os últimos dias da velha Rússia. A Crimeia, nessa obra, é representada como uma Arca de Noé onde estão os que procuram se salvar da catástrofe. Militares do Exército Branco, sacerdotes e aristocratas petersburguenses tentam entender o que terá acontecido com a Rússia e qual será o lugar deles no mundo.
O escritor Gaito Gazdanov emigrou para a França através da Crimeia. Em seu romance “Uma Noite em Casa de Clair”, ele descreve a anarquia reinante nas ruas das cidades, os trens com feridos nas estações. A última impressão que o escritor fixou da pátria: a areia escaldante do litoral da cidade de Feodóssia voando para os navios carregados de fugitivos. A Crimeia já fora tomada, mas continuava resistindo.
Vladímir Nabokov emigrou igualmente passando pela Crimeia. Embora preferisse fechar os olhos à catástrofe e criar seu próprio mito. O protagonista do conto “A Primavera na Fialta” (se trata da imagem coletiva das cidades da península, como Ialta, Sudak e Kerch), feliz pai da família, chega à Crimeia, onde encontra Nina –sua amiga, casada também, que conheceu há 15 anos, em 1917, e com que namoriscava de vez em quando. A hipotética vida com Nina seria “dificilmente imaginável, desde sempre impregnada de tristeza apaixonante e insuportável (...)”.
Para Nabokov, Nina personificava a Rússia e o ano de 1917 –as mudanças que estavam para acontecer. Pouco depois da despedida, a jovem morre num acidente de avião. O automóvel em que ela seguia a grande velocidade se chocou contra um carrinho de um circo ambulante.
Em seus posteriores romances, Nabokov deixa transparecer a nostalgia de uma potência liberal do leste europeu. O palácio do imperador entre palmeiras e o suserano contemplando o mar através da janela. Nabokov transfere para a Crimeia a capital de uma Rússia idealizada.
Península ou miragem
É claro que a literatura russa não desapareceu com a partida para o estrangeiro de uma verdadeira plêiade de escritores. A Crimeia continuou a atrair personalidades criadoras, que estavam em desacordo com o poder, ou seja, potenciais emigrantes. Entre eles, o jovem poeta e tradutor Iossif Brodski, futuro Prêmio Nobel. Sendo natural da fria Petersburgo, ele encontrou na Crimeia a união ideal de mar e vinho, elementos preponderantes em todas suas obras escritas lá. Numa obra de rima branca intitulada “Dedicada a Ialta”, Brodski nos fala da incerteza e casualidade da vida terrena, governada invisivelmente pelo “fatum” impiedoso. No poema “Numa Noite de Inverno em Ialta”, entra numa polêmica com o gênio do romantismo Goethe: “(…) para, oh instante, pois és mais irrepetível do que belo!”
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A liberdade da Crimeia atinge o culto maior no romance de Vassili Aksionov “A Ilha da Crimeia”, escrito nos anos 70. Aksionov foi mais longe do que fora Nabokov em seu tempo. Ele reescreve a História e transmuta a Geografia. No romance, a Crimeia nos surge como uma ilha (não como a península que realmente é), que os bolcheviques não dominaram nem em 1920. Não se deixando vergar, se torna um Estado independente.
A Ilha da Crimeia de Aksionov está florescendo, mas procura a amizade da vizinha URSS. Todavia, o “irmão mais velho” não tenciona retribuir a amizade. O Exército Vermelho só meio século depois toma a Crimeia. A história alternativa da Rússia é engolida pela real. A ilha da liberdade regressou à não existência.
A queda da Crimeia de Aksionov é uma metáfora da destruição dos idealistas dos anos 60, escritores soviéticos talentosos que ingenuamente acreditaram na humanidade do Partido Comunista. A “ilha da liberdade” é uma utopia para um país do tamanho de meio continente, cujo povo acredita somente na força. Apesar disso, a Crimeia orienta realmente os pensamentos e as almas para a liberdade. Púchkin tinha razão: passeando por Ialta ou por Gurzúf, há que procurar a liberdade na própria alma.
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