García Márquez durante coletiva de imprensa com os dirigentes da União de Cineastas da URSS em 1987 Foto: M. Yurchenko / Ria Nóvosti
Ogoniok: Ao contrário da maioria dos tradutores, você teve a oportunidade de se reunir pessoalmente com o escritor. Como foi esse encontro?
Serguêi Markov: A primeira vez que eu me encontrei com Marquez foi em Havana, em 1980, para uma entrevista para a revista “Ogoniok” mesmo. Ele me perguntou por que a revista tinha um nome tão estranho e eu fiquei uns dez minutos lhe explicando a origem do nome. Acabou sendo uma entrevista engraçada.
Fisicamente, ele me lembrava o nosso ator Armen Jigarkhanian. Era um homem charmoso, que sabia conquistar os outros: dava tapinha no ombro, contava anedotas, fazia piadinhas indecentes. Marquez deu, em toda a sua vida, milhares, talvez dezenas de milhares de entrevistas. E de todas as vezes ele falava sobre si mesmo de uma forma diferente. Mitificava tudo que podia. Mesmo a data de nascimento ele deu diferentes. Por isso, todo mundo aguardava por suas memórias. Mas todas as suas obras estão imbuídas de motivos autobiográficos.
Ogoniok: Você deu ao seu livro o nome de “As meretrizes e os ditadores de Gabriel Garcia Marquez”. É uma metáfora ou nele você fala de meretrizes e ditadores reais?
SM: Lembre-se que na Bíblia quase não há heróis positivos. Mesmo em relação aos apóstolos a atitude é ambígua. Já as meretrizes são todas personagens positivas: Maria Madalena, Maria do Egito. Com o Marquez se passa o mesmo. Essa linha de escrita pode ser acompanhada desde seus primeiros trabalhos, com o conto “A mulher que chegava às seis”, sobre uma prostituta que mata um cliente. Marquez justifica a ação, pois ela não podia não ter matado o homem. O tema das meretrizes está presente em todas as obras dele até “Memória de minhas putas tristes”.
Em entrevista à revista norte-americana “Playboy”, ele disse: “As prostitutas sempre foram as minhas melhores amigas”. Ele viveu em bordéis, que era mais barato do que os hotéis. As prostitutas lhe passavam as camisas e datilografavam os seus manuscritos. xNo livro de memórias, ele descreve como uma prostituta, nua e de óculos, ficava sentada datilografando os seus contos. Elas lhes davam dicas sobre histórias e até mesmo faziam crítica literária.
O interesse pelos ditadores não é menor. Assim que chegou a Moscou, a primeira coisa que Marquez fez foi visitar o mausoléu onde, na época, estava Stálin. Examinando cuidadosamente o corpo mumificado, ele reparou nas mãos, que lhe pareceram femininas. Ele acabou dando esta característica mais tarde ao seu ditador de “O Outono do Patriarca”.
A imagem do patriarca é construída como um mosaico – com traços de diferentes pessoas. De um ele tirou os olhos, de outro – a maneira de falar. Quando vivia em Barcelona, teve a oportunidade de se encontrar com Franco. Marquez recusou o convite e disse na ocasião: “O que eu diria a ele? Que estou escrevendo um livro sobre um filho da puta e que gostaria de pegar os seus traços emprestados?”
Ogoniok: A estreia russa de Marquez começou na década de 1970, e imediatamente ele se tornou extremamente popular. Desde então, tudo relacionado com a América Latina tende a causar rebuliço enorme na Rússia, até mesmo as novelas. Por que acha que isso acontece?
SM: Nós somos parecidos com os latino-americanos. Seja na preguiça, na franqueza e até mesmo na crueldade. Tanto a Rússia como a América Latina se caracterizam por um sentimento épico. “As pessoas mais interessantes vivem na União Soviética”, costumava dizer Marquez. A sua Marquez com suas meretrizes e ditadores foi para nós uma revelação. É de admirar que tenham permitido imprimir os seus livros aqui.
Ogoniok: Provavelmente por causa dos seus pontos de vista comunistas....
SM: Claro. É importante não esquecer que ele era amigo de Fidel desde 1948. Os dissidentes cubanos me disseram que Fidel apoiou financeiramente a popularidade de Marquez. E Fidel significava União Soviética, petrodólares. Ele veio ao nosso país umas quinze vezes. A primeira vez veio para o Festival da Juventude e dos Estudantes, passou um mês aqui e escreveu o extenso ensaio “22.400.000 quilômetros quadrados sem uma única propaganda de Coca-Cola”.
Depois veio já no tempo do Gorbatchov, a convite pessoal deste último. Visitou a redação da revista Ogoniok, se reuniu com o diretor [teatral] Spesivtsev, que estava na época encenando “Cem Anos de Solidão”. Ele se maquiou e foi mostrar para os atores como interpretar corretamente o personagem. E depois, de repente, deixou de vir cá e de se interessar por nós. A maior tragédia de sua vida, como ele mesmo contava, foi o colapso da União Soviética. Depois de 1991, a Rússia já não era tão interessante quanto antes.
Entrevista feita por Ian Chenkman
Publicado Originalmente na revista Ogoniok
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