Diversão socializada no Bloco Soviético

Revolução Russa e Guerra Fria serviram de inspiração para bloco de carnaval que reuniu cerca de 200 pessoas em São Paulo.

 

Foto: Victor Moriyama/Xibé

No sábado passado (22), o centro de São Paulo foi tomado por um grupo eclético de indivíduos e organizações com propostas diferentes de como aproveitar o fim de semana. Enquanto uns reuniam-se para o protesto nas imediações da Praça da República sob o lema “Não vai ter Copa”, outros aproveitaram para celebrar o pré-carnaval nos mais de 30 blocos espalhados pela cidade.

O evento de oposição ao governo e à Copa do Mundo, que será realizada em junho, ficou marcado tanto pelas cenas de depredação de bancos e lojas quanto pela repressão violenta da polícia e a detenção de 230 pessoas, incluindo jornalistas e fotógrafos que faziam a cobertura do ato. Próximo dali, porém, um movimento alheio aos confrontos entre policiais e manifestantes, quase sem ser notado em seu caráter também provocativo, juntava de forma lúdica o engajamento político à descontração típica do carnaval brasileiro.  

Vestidas de vermelho ou fantasiadas de generais cubanos e soldados russos, quase 200 pessoas marchavam em ritmo de festa em direção aos redutos boêmios do bairro central de Santa Cecília, sob o estandarte da foice e do martelo da ex-União Soviética. Chamado ironicamente de Bloco Soviético, o grupo carnavalesco criado em 2013 saiu pela segunda vez nas ruas de São Paulo, reunindo ativistas de diversas causas sociais, estudantes, jornalistas e professores universitários que dividem entre si não apenas opiniões políticas relacionadas com a esquerda, mas também um saudosismo bem humorado da cultura dos países ex-socialistas e da Guerra Fria.

“Não se trata de partido ou de um espaço para militância, mas de um bloco de carnaval para uma festa livre e democrática. Apesar de boa parte das pessoas aqui se identificar com os ideais de esquerda da antiga Rússia, as nossas posições individuais variam muito e são todas aceitas”, explica um dos fundadores do bloco, o produtor e diretor audiovisual Tiago Marconi, 32 anos.

Segundo ele, a ideia de criar um bloco de carnaval de inspiração russa e com viés socialista partiu dos encontros de um grupo de amigos nas redes sociais, batizado de “CRS2” (sigla de “Comando Revolucionário”, associada ao símbolo de coração que surge ao se juntar a letra S com o número 2), que se reúne periodicamente há dois anos para beber e conversar. Entre as muitas pautas abordadas nos encontros, estão os protestos no país e a preocupação com a ascensão dos valores conservadores e de direita que ganharam espaço na mídia brasileira.

“O nome Bloco Soviético surgiu como ironia para uma visão polarizada do mundo e uma piada com quem vê qualquer crítica ao capitalismo como bolchevismo, algo que tem se tornado cada vez mais comum na internet em tempos de manifestações”, continua Marconi.

Crítica travestida

Já no começo da tarde ensolarada, um pequeno aglomerado de pessoas se concentrava em frente ao bar Tubaína, na região da Avenida Paulista, onde o hino da Internacional Comunista e canções russas como “Katyusha” misturavam-se aos sambas das décadas de 1930 e 1940 e ao funk carioca. Alguns membros mais animados gritavam em tom de brincadeira: “toca Ultraje a Rigor ou Lobão!”, em referência aos músicos Roger e Lobão, ícones do rock nacional na década de 1980 que hoje estão mais associados com a defesa do conservadorismo.

Antes começar a descida em direção ao centro da cidade, um rapaz de saia e camiseta vermelha com a sigla CCCP (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, em russo) fez um anúncio por  megafone. “Se você é reacionário, essa é a sua última chance para sair! Está acabando o regime capitalista e vai começar o regime ‘cachaçalista’ (sic)!”, brincou.

Para fazer jus ao mote do bloco, alguns participantes inspiraram-se em uniformes militares das repúbicas socialistas ou assuntos mais polêmicos das atuais divergências políticas do país, como o programa federal Mais Médicos, que tem importado médicos estrangeiros, sobretudo cubanos, para trabalhar no sistema púbico de saúde. Esse foi o caso do percursionista no bloco e estudante de Direito Marcus Toledo, 26 anos, que estava fantasiado de médico cubano. “Em uma festa da faculdade já tinha me fantasiado de açougueiro cubano, mas hoje não saí com vontade de ficar explicando a razão e simplifiquei a crítica”, disse.

Além das questões locais, os temas internacionais também inspiraram os presentes. A cientista política Juliana Bueno, 24 anos, não passou despercebida e aproveitou a ocasião para ir de Miss Venezuela, roupa escolhida em decorrência da morte da modelo Génesis Carmona em um protesto em Caracas na última semana. “A ideia, claro, era fazer uma piada sobre os protestos que acontecem por lá. Tenho críticas ao chavismo, mas também faço uma defesa do seu sucesso com as classes mais pobres”, explicou.

No trajeto de quase três quilômetros que o cortejo soviético fez até o seu ponto de destino, em um outro bar em Santa Cecília , a festa foi embalada por paródias “socialistas” e antirreacionárias de marchinhas de carnaval tradicionais, sempre com alguma menção à vida na Rússia ou à política. Canções como “O teu cabelo não nega, mulata”, de Lamartine Babo, e “Jardineira”, de Benedito Lacerda e Humberto Porto, ganharam novas versões como “O teu discurso não nega, machista” e “Engels Jardineiro”, respectivamente.

Para ajudar os novos participantes, um folheto com as letras foi distribuído. Nele constavam, entre outras música, a “Dança do Maxixe”, que virou “Dança do Afif”, e “Cachaça não é água”, que, entoada pelos foliões, se transformou em “Orloff não é água”.

LGBTs nas ruas

O coro foi acompanhado por tambores, guitarra e violão, e algumas canções foram puxadas por Vange Leonel, cantora famosa na década de 1990 e hoje escritora e ativista nos movimentos pelos direitos LGBT. “Estou vestida de Raúl Castro”, disse ela à Gazeta Russa ao mostrar seu uniforme verde-musgo e um bigode falso.

Segundo uma das organizadoras, a jornalista e diretora de televisão Cilmara Bedaque, o grande trunfo do bloco é promover a tolerância, motivo pelo qual o evento foi oficializado pela prefeitura neste carnaval e quase triplicou de tamanho desde o último ano, quando saiu com apenas 70 pessoas pelas ruas.

“Temos essa inspiração russa, mas não nos comprometemos com as políticas de Pútin, por exemplo. Boa parte dos integrantes, incluindo eu, milita pelas causas gays”, disse Bedaque. “Estamos aqui para evidenciar os preconceitos e essa dualidade ridícula de direita e esquerda, que muita gente não consegue superar. Ser pró ou contra o bloco só torna a nossa piada mais intensa.”

O Bloco Soviético não sofreu nenhum tipo de resistência ou represália ao longo dou caminho. A celebração pacífica ficou marcada pela participação de diversos pais e mães que levaram seus filhos em carrinhos ou no colo para acompanhar a passagem.

De acordo com outra organizadora e também assessora de imprensa do evento, Daniela Marques, o objetivo é que a festa aconteça novamente no ano que vem com mais participantes. “Já tem quem discuta a possibilidade de desfilar em Moscou no aniversário de 100 anos da Revolução Russa, em 2017. Seria muito interessante levar um pouco do nosso carnaval para a Praça Vermelha”, finalizou.

 

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