Pais e filhos Foto: divulgação
“Sem crise, não há criação. Não conheço processo de criação que não tenha ultrapassado uma crise”, diz Elena Vássina, professora de letras russas da Universidade de São Paulo (USP).
Entrevistada com exclusividade pela Gazeta Russa, Vássina faz referência aos relatos de “Caderno de Atuação”, um diário sobre o processo de montagem da adaptação para os palcos do romance “Pais e Filhos”, de Ivan Turguêniev (1818-1883).
A peça estreou em setembro de 2012, montada pela mundana companhia (com minúsculas, como prefere o coletivo teatral), sob a direção do russo Adolf Shapiro, um stanislaviskiano discípulo de Maria Knébel (1898-1985).
Maria, por sua vez, foi aluna de Stanislávski (1863-1938), encenador russo responsável por um dos mais conhecidos métodos de interpretação para atores, inspirador dos procedimentos do Actor’s Studio nos EUA, entre muitos outros.
O livro de 180 páginas que conta os bastidores da montagem foi lançado no dia 24 de maio no Instituto Cultural Capobianco (região central de São Paulo).
A cerimônia de lançamento foi aberta ao público e contou com uma mesa de debates composta de Vássina, da iluminadora e docente de artes cênicas da USP Cibele Forjaz e da professora de comunicação e semiótica da PUC Cecília Salles.
“É um diário de bordo, um compartilhamento dos aprendizados das diferenças que aprofunda o processo de criação dos atores”, explica à Gazeta Russa Cibele Forjaz, responsável pela iluminação da peça.
Os registros do livro são feitos exclusivamente pelos 11 atores da trupe que encenou “Pais e Filhos” e mostram as tensões e lições do processo para montagem da peça.
“Shapiro não se adaptou às nossas necessidades e vontades. Pelo contrário, tivemos que trabalhar muito para chegar aonde ele queria. Isso é interessante, porque gera movimento e conflito”, revela a atriz Sofia Botelho.
Entre os apartes do debate na noite do lançamento, o ator Silvio Restiffe lembrou que Shapiro havia avisado o elenco de que sempre começava seus trabalhos de forma muito democrática, mas que terminava como um ditador.
Imagine o que isso não significou para uma companhia, como a mundana, acostumada à independência de atores-criadores que gerem o próprio grupo e que têm por proposta programática refletir e se questionar continuamente sobre seus procedimentos. De certa forma, passado todo o processo, o “Caderno...” parece uma reafirmação da independência do grupo.
Da montagem ao livro
A dinâmica dos conflitos, das dúvidas e de todo o processo que cercou os bastidores de “Pais e Filhos” aflora de maneira muito viva nas páginas do “Caderno de Atuação”, cujo subtítulo explicativo delimita o período da experiência: “Diário da montagem de ‘Pais e Filhos’, nas manhãs, tardes e noites de 18 de maio de 2011 a 29 de setembro de 2012”.
O livro começa com um email dirigido ao grupo e à produção, quando foi dado o pontapé inicial para a montagem de Shapiro, e termina na data da estreia do espetáculo.
O diretor já tinha tido uma experiência com a mundana companhia em 2010, por ocasião de “Tchekhov4 – Uma Experiência Cênica”, uma das atrações nas comemorações pelos 150 anos de nascimento de Tchékhov (1860-1904). Convidado a dirigir a mundana por uma segunda vez, o russo sugeriu montar o texto do romance “Pais e Filhos”, clássico da literatura de seu país que ele mesmo havia adaptado.
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A trama sobre o choque de gerações na Rússia do século 19 conta a história do estudante Arkádi e do médico recém-formado Bazárov que viajam pelo interior do país para visitar os pais e acabam se defrontando com as estruturas arcaicas e com os valores da aristocracia rural. O livro também é famoso por ter popularizado o termo “niilista”, aplicado a Bazárov.
Pais e filhos Foto: divulgação
Durante o processo de montagem, Shapiro veio por três vezes ao Brasil para ensaiar com o grupo, a última das quais para uma temporada de sete semanas que terminou com a estreia da peça.
Nos intervalos em que o diretor não estava fisicamente com o coletivo, Shapiro passava uma série de tarefas e de exercícios para os atores e os monitorava à distância, mantendo-se sempre em contato.
É essa experiência que os atores da mundana resolveram registrar em forma de diário e publicar no “Caderno de Atuação”. Das páginas do livro, emergem reproduções de fotografias, desenhos, resultados de editais, roteiros de ensaios, cópias de bilhetes, de emails, de esquemas e de planos, tudo costurado pelos relatos dos 11 atores participantes do projeto.
A edição optou por organizar o depoimento de cada dia identificando o autor pela cor da tinta de impressão. Assim, não é difícil que um parágrafo que registre, por exemplo, o relato do grupo sobre o diretor Shapiro seja escrito em três ou quatro cores, que distingue os autores de cada trecho.
Como lembrou Cecília Salles na noite do lançamento, essa maneira de editar a obra permite acompanhar o ponto de vista de cada ator simplesmente seguindo-se o texto pelas cores.
A vida do ator na pororoca cultural
A partir da rara experiência de aplicação de Stanislávski por um diretor russo a um grupo brasileiro, é possível ver emergirem no diário, além das diferenças e das tensões da criação de uma peça, aspectos da vida privada do teatro aos quais raramente o público tem acesso.
Há registros, por exemplo, da atriz Lúcia Romano que cobra a atenção dos colegas porque a leitura está dispersa durante um ensaio. Há também relatos da internação do filho da atriz Luah Guimarãez e da morte da mãe do ator Donizete Mazonas.
Paralelamente, encontramos a confissões da mesma Luah, reflexões de seu colega Sergio Siviero, ou uma explosão do ator Fredy Állan. “Se há um erro em nosso processo (...) é termos que virar russos ao invés de comermos o invasor”, escreve o último.
Numa das discussões do grupo durante os ensaios, a mão firme do diretor “democrático e ditador” aparece no relato de Lúcia Romano: “Quando vocês concordarem sobre o que pensam, venham falar comigo...”, teria dito, soberano, Shapiro.
“É uma rede com vários pontos de vista. O livro levanta dúvidas sobre o ‘processo atoral’ (do ator) que todo mundo tem. O objetivo do ‘Caderno...' é captar o aprendizado da diferença, compartilhar e elaborar essa experiência. O livro é um diálogo de muitas vozes sobre o teatro. É uma pororoca cultural”, resume Cibele Forjaz.
Equipe de atores
“A obra tem importância não só histórica, mas também prática, uma vez que mostra uma visão ‘de dentro’, sob o ponto de vista dos atores. Nunca atores brasileiros tiveram um contato tão próximo e tão duradouro com um diretor russo e com Stanislávski”, completa Elena Vássina.
Ela espera que o “Caderno...” funcione como um manual para os alunos de teatro. E como nada na mundana deixa de ser questionado, a atriz Sofia Botelho pensa diferente. “Trata-se muito mais de relatos, sensações, questionamentos do dia a dia do trabalho de atores que estão vivendo esse processo do que um manual de ‘como deve ser feito’”, diz.
Mas é a atriz Luah Guimarãez, numa das passagens do diário, que condensa o espírito stanislaviskiano com que a companhia se joga nas experiências que valorizam mais o processo que o espetáculo. “O ator precisa ser atravessado e atravessar-se pelo material, deixando-o entrar em sua vida, em seu corpo. Em cada um dos nossos projetos, isso é vivido de forma diferente”.
Serviço
CADERNO DE ATUAÇÃO
Autores - vários autores (atores da mundana companhia na peça “Pais e Filhos”)
Editora – edição da mundana companhia
Quanto – R$ 25 + frete
Como adquirir - enviar email para paisefilhos@gmail.com, especificar a quantidade e o endereço de entrega e a mundana companhia entrará em contato
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