Brasileiro dá dicas para driblar os desafios de uma das maiores ferrovias do mundo
Percorrer todos os 9288 km da ferrovia transiberiana é um sonho. Que se torna especialmente difícil de realizar quando paramos para pensar nas dificuldades: tempo dentro dos trens, idioma, clima, falta de infraestrutura, orçamento, cidades onde parar...
Enfim, trata-se de um desafio enorme, que se abre para o viajante mesmo antes da partida, seja da Estação Kazanski, em Moscou, seja do aeroporto, ainda no Brasil.
Aliás, para nós, brasileiros, o desafio é ainda maior. Afinal, o que esperar desse país desconhecido, onde oriente e ocidente, passado e futuro, religiões, etnias, idiomas e culturas convivem lado a lado?
Para começo de conversa, cito Fiódor Tiútchev, um dos grandes poetas russos: "Não se entende a Rússia com a razão. Na Rússia é preciso apenas crer". Esse deve ser o lema do viajante brasileiro ao cruzar o maior país do mundo. Mesmo para nós, os contrastes, as sutilezas e, sobretudo, aquilo que transforma desde o mongol mais simples em Ulan-Ude até o mais novo rico de Moscou em russo: aquele olhar melancólico, o jeito hospitaleiro, o gosto por piadas e histórias, o amor pela pátria-mãe, tudo isso unido por centenas de milhares de batentes de trem em infinitos quilômetros de trilhos, em trens de luxo como o "Águia dourada" ou nos mais baratos assentos-leito "platzkart", que circulam levando operários ainda praticamente soviéticos para a rica Sôtchi, ambiciosa de louros olímpicos.
Hoje em dia, as viagens começam em uma tela de computador. É preciso saber o itinerário, os preços e montar um intrincado quebra-cabeças de trens, horários e cidades. Aí, amigos, fica o aviso: se isso não for feito com o maior cuidado, a chance de dar alguma coisa errada é monstruosa. Afinal, mesmo em Birobidjan, no Extremo Oriente e com fuso já na casa dos dois dígitos, os trens rodam no horário da distante Moscou. É preciso muita, mas muita precisão. Principalmente se levarmos em consideração que a Transiberiana mesmo vai de Moscou (ou São Petersburgo) ate Vladivostok. Ou vice-versa. Roteiros via Mongólia ou China, no máximo, são comboios que cortam a Sibéria.
Especialmente para brasileiros, duas coisas assustam: o clima e a língua. O primeiro é facilmente driblável: escolha primavera ou outono. Recomendo evitar também o verão, época de trens lotados, preços altose muito calor - lembro que a maioria dos vagões russos não tem ar condicionado ou janelas que abrem. Primavera e outono têm temperaturas amenas, aquele friozinho gostoso, natureza florindo ou morrendo (o lindo e inesquecível "outono dourado"), nativos e turistas mais seletos nos vagões. Um convite ao papo, à reflexão e ao companheirismo.
A língua, por outro lado, é um inimigo cruel. Russos são, num primeiro momento, difíceis. Duros, grosseiros, esquisitos. Para nossa natureza pessoal e latina, isso é complicado. Mas, assim como um lago congelado,basta quebrar a primeira camada de gelo que todo um ecossistema rico e vivo se revela. Russos são encantadores. Suas vidas, histórias, expressões, dores e alegrias dariam um tom épico à novela mais entediante. Mas não espere que isso se revele no inglês. Nos vagões, a bela língua britânica não tem espaço ou acha raras brechas. Lampejos que não transmitem sequer um décimo da riqueza cultural de seus falantes.
Mas a maior dificuldade - e a coisa mais fascinante - de viver de trem em trem, cruzando meio mundo de Moscou a Vladivostok, passando pela Sibéria, Mongólia e território judeu, é ver a diferença. Não como nós, brasileiros, que temos um mundo de nuances entre potiguares e gaúchos, entre manauaras e cariocas. Mas um abismo cultural, que por vezes é uma chaga profunda entre moscovitas e vladivostoques. A Transiberiana e, quase sempre, uma viagem pelas "não Rússias".
Explico com uma anedota: nos tempos da União Soviética, costumava-se dizer "Vladivostok fica longe. Mas é nosso". Hoje, fala-se "Vladivostok é nosso. Mas fica longe...". Ou seja, um pais sangrado pela enorme distância equilibra pratos para manter-se íntegro. Em Kazan, é preciso pisar em ovos com os orgulhosos e encantadores tártaros. A mesma coisa nos Urais.
Na Sibéria, a tensão é evidente, dado o clima severo e o alegado "esquecimento" de Moscou. Ulan-Ude, Tuva, Blagoveschensk e todos os lugares com alta influência asiático-mongol, sem falar no território autônomo judaico, todos se referem uns aos outros como "lá não é a Rússia. Aqui é a Rússia". Khabárovsk e Vladivostok, potências do Extremo Oriente, lideram a identidade da "Rússia de lá, do Pacífico".
Viajar de trem, pela Transiberiana, além de um desafio à resistência física, é um poderoso teste mental, de compreensão, de análise das diferenças e de percepção das sutilezas. Mas também é um deleite para quem aprecia a natureza e não tem pressa de ver a vida passar.
É sobretudo uma celebração da amizade, do ato de compartilhar. Desde uma vodca ou um pão na mesa do platzkart até a riqueza inteira de uma republica autônoma, é muito mais fácil fazer essa viagem unidos. Afinal, mesmo que nunca mais nos vejamos depois, a Transiberiana ensina que nosso melhor amigo está hoje, aqui e agora, com a gente.
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