A Rússia que falava francês

Em 1812, nobreza já tinha incorporado o francês a um ponto que tinha sotaque ao falar russo, e isso confundia os camponeses, que combatendo as tropas de Napoleão, acabavam recebendo os nobres oficiais russos a machadadas ou tiros.

Em 1812, nobreza já tinha incorporado o francês a um ponto que tinha sotaque ao falar russo, e isso confundia os camponeses, que combatendo as tropas de Napoleão, acabavam recebendo os nobres oficiais russos a machadadas ou tiros.

Ekaterina Lobanova
Alta sociedade usava língua estrangeira quase mais que a própria nos século 18 e 19. O “pai” do russo moderno, Aleksandr Púchkin, escreveu 90% de suas cartas a mulheres na língua, que era considerada “nobre” e “elevada”.

Na Rússia contemporânea, o romance "Guerra e Paz", de Lev Tolstói, continua sendo um dos livros mais complicados do currículo escolar - e não apenas devido a seu impressionante volume, impresso em quatro tomos.

"Quando abri as primeiras páginas, vi que quase metade do texto estava em francês e pensei: deixa pra lá, é melhor ler um resumo", conta Aleksêi, um moscovita de 23 anos.

Quase 50% dos diálogos que abrem "Guerra e Paz", em que figuram nobres petersburguenses no salão da socialite Anna Pavlovna Scherer, são feitos em francês. E isso não é invenção do autor, mas reflexo dos costumes do início do século 19, em que se ambienta o título.

Sobre um dos personagens Tolstói observa: "Ele falava naquele elegante francês em que não só falavam, mas também pensavam nossos avôs".

No século 18, o francês conquistou a Rússia, ganhando status de língua não oficial da aristocracia.

Com os olhos no Ocidente

Tudo começou com as reformas de Pedro, o Grande, que governou a Rússia entre 1682 e 1725.

Terceiro tsar da dinastia Romanov, Pedro – ou Piotr, no original em russo, a quem interessar possa - mudou categoricamente o curso do país com o sonho de transformar a Rússia em uma potência europeia.

Para isso, ele não só travou guerras como também destruía os pilares da velha e patriarcal Rus’ – como era chamado então o primeiro Estado eslavo oriental. Assim, ele obrigou os nobres a cortar as barbas, a vestir trajes europeus e a estudar no Ocidente.

Como resultado, já no século 18, as línguas estrangeiras passaram a ser amplamente empregadas nos eventos da aristocracia.

Naquele tempo, de todas as línguas ocidentais, era justamente o francês que estava em voga, não apenas na Rússia, mas em toda a Europa.

"O francês foi a primeira língua a criar a noção de uma norma única", diz o psicolinguista e tradutor Dmítri Petrov ao explicar o sucesso da língua.

Para ele isso se deve ao premiê francês Cardeal de Richelieu, que fundou, em 1635, a Academia francesa. Era essa instituição a responsável por questões de criação e regulamentação de normas linguísticas.

Como consequência, o francês substituiu, pouco a pouco, o latim como língua franca.

Marola, onda, tsunami

A Revolução Francesa (1789-1799) deu um impulso adicional para a difusão do francês entre a nobreza russa. Então, muitos aristocratas fugiram do país, tomado por rebeliões, e encontraram refúgio em outros lugares, como a Rússia.

Nesse período, o número de imigrantes franceses na Rússia chegou a 15 mil.

O governo do Império Russo via com desconfiança qualquer revolução. Por isso, abrigou de bom grado os monarquistas.

Alguns deles alcançaram altos cargos servindo ao trono russo, como Armand-Emmanuel de Richelieu, um descendente do famoso cardeal, que se tornou prefeito de Odessa (hoje, em  território ucraniano). 

Mas outros não foram tão bem-sucedidos: tornaram-se tutores junto a famílias ricas, ensinando dança ou esgrima às crianças da nobreza.

Francofilia e francofobia

Muito antes de Tolstói, articulistas e escritores notaram o entusiasmo da nobreza russa em relação a tudo que era francês, o que gerou discussões acaloradas.

Enquanto alguns consideravam que os empréstimos do francês enriqueciam a cultura, enobreciam a língua russa, outros tinham opinião contrária.

"Vamos levar nossa língua à completa decadência", afirmava Aleksandr Chichkov, ministro da Educação no Império Russo que defendia a pureza da língua local.

No clássico da comédia "Gore ot Uma" (“A desgraça de ser inteligente”),  escrito em 1825, o escritor Aleksandr Griboiêdov referia-se com ironia aos russos que idolatravam tudo o que era francês, sem sequer falar a língua.

Ainda assim, todos os nobres se comunicavam em francês - uma língua cortês, associada à nobreza e aos sentimentos mais elevados.

Um estudo das cartas do mais famoso poeta russo, Aleksandr Púchkin, considerado o “pai da língua russa moderna”, mostra que ele empregou o francês em 90% de suas cartas endereçadas a mulheres.

O declínio da francofonia

Durante a guerra contra Napoleão, a popularidade do francês começou a decair. O sentimento patriótico forçou os nobres a empregarem mais a língua nativa - por vezes, isso era uma questão de sobrevivência.

Denís Davídov, poeta e herói da guerra de 1812, contava que os camponeses (que não sabiam francês e muitas vezes eram analfabetos no próprio russo) "confundiam oficiais da nobreza russa com inimigos, devido a sua pronúncia estranha da língua russa" e chegavam a recebê-los a machadadas ou tiros.

O período da fascinação pela França tem aí seu ponto final. Muitos galicismos introduzidos na língua russa no século 18 caíram, pouco a pouco, no esquecimento, mas dezenas de palavras ainda permanecem.

Hoje, porém, os russos não podem sequer imaginar a origem estrangeira dessas palavras emprestadas que tomaram o glossário nacional. "Aficha" (cartaz), "pressa" (imprensa), "charm" (charme), "kavaler" (cavalheiro) e muitas outras são usadas sem desconfiança por todas as classes. 

"Alguns desses empréstimos, necessários à língua, permaneceram, outros, desnecessários, sumiram. Isso ainda acontece e continuará acontecendo com outros complementos à língua”, diz o escritor Piotr Vail.

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