Rodolfo Vaz vive Acáqui Acáquievitch, funcionário público que tem o capote roubado em texto de Gógol. Foto: João Caldas
Ar condicionado como elemento central da primeira cena. Raul Seixas. Videoarte. Musicista tomando parte na ação. Descrita assim, a nova montagem de "O Capote" no Centro Cultural Banco do Brasil em São Paulo pode assustar pela quantidade de inovações que insere em um texto do século 19. Mas o resultado tirou o fôlego - e risadas - de quem compareceu à pré-estreia do espetáculo, na última segunda-feira (20).
Com humor, tragédia e ironia na medida certa para fazer jus ao texto original do gênio russo-ucraniano Nikolai Gógol (1809-1852), a peça conta a história de Acáqui Acáquievitch, um funcionário público que se vê obrigado a colocar quase um quarto do salário anual na compra de um casaco novo para enfrentar o frio petersburguense.
A montagem é a primeira adaptação feita por Drauzio Varella para o teatro, em colaboração com o dramaturgo Cássio Pires.
"Minha trajetória no teatro é longa e cheia de fracassos. Começou durante a faculdade e, quando me separei da minha primeira mulher, foi em um curso de teatro que conheci a [esposa atual e atriz] Regina [Braga], em 1981", disse Varella à Gazeta Russa.
Ele conta que, quando o ator Rodolfo Vaz - que encenou a peça "Por um fio", baseada na obra do médico - comentou sobre o desejo de interpretar o Acáqui, ele se propôs na hora a fazer a adaptação.
"Eu já tinha lido O Capote umas quatro ou cinco vezes, e adoro. Tenho uma intimidade muito forte com os autores russos, um grupo que penetra fundo na alma humana sem desperdiçar palavras", diz Varella.
Vestindo o Capote
Dirigida por Yara de Novaes, que concebeu a ideia junto com Vaz, a peça, segundo ela, não traz tanta inovação à toa.
"O vídeo é uma fonte de luz, mas também de textura, de significado digressivo, e aí a luz tem que compor com isso. Claro que dá trabalho, porque você tem que tentar equilibrar tudo para falar a mesma língua, todos esses elementos estão ali não para criar uma babel, mas para gerar tensões e provocações", diz Novaes.
Já Vaz, explica que um dos objetivos da montagem era fugir da peça de época, com a qual a dupla já havia trabalhado ostensivamente no Grupo Galpão, do qual ele fez parte por duas décadas.
"Aí a gente caiu para esse social, para a provocação, evitando o monólogo, como tinha sido pensada inicialmente a peça", diz.
Frase
"Meu pai era apaixonado pela literatura russa, e O Capote é uma novela formativa, pela qual precisa passar qualquer pessoa que se enverede pela boa literatura"
Yara de Novaes
O ator mineiro conta ainda que, durante o processo criativo, o grupo fez um experimento a que chamou de "Vestir o capote".
"Essa novela social é um dos primeiros momentos em que a literatura fala de um ser ordinário, uma pessoa quase invisível. Então resolvemos conversar com pessoas que tivessem uma pegada social", explica.
No topo de sua lista, estava Varella, com a vasta experiência do trabalho médico prestado em prisões - que resultou, ainda nos anos 1990, no best seller Estação Carandiru.
"Depois, tivemos uma conversa com o filósofo Mario Sérgio Cortella que abriu muitas portas, inclusive para a 'Ouro de Tolo'", diz, referindo-se à música de Raul Seixas. A canção ganha uma paródia improvável interpretada por Acáqui no espetáculo.
O escritor Fernando Bonassi e a pesquisadora e professora do departamento de russo da USP Elena Vássina foram outros dos interlocutores da trupe ainda no processo de preparação.
"A colaboração com a Elena foi maravilhosa, fundamental! Ajudou a entender Gógol com esse escárnio, fazendo uma leitura muito contemporânea do autor", explica Novaes.
Sem voz
O formato a que o grupo chegou, após toda a pesquisa e experimentos, foi o de dois narradores crueis que não dão a palavra ao protagonista.
Interpretados por Rodrigo Fregnan e Marcelo Villas Boas, que também fazem as vezes da "pessoa importante" que ralha com Acáqui, do alfaiate Petrovitch e dos oficiais de polícia, os dois têm tanta parte na ação que, durante a preparação, quase suprimiram o protagonismo de Vaz, que acabava calado demais, segundo o mesmo.
"Acáqui, é meio de Brás Cubas, voltando de fantasma para assombrar. E ele está lá, na repartição, como no século 19, embora com uma roupa remetendo a um Maiakóvski", explica Vaz.
A violência urbana, o abismo entre classes sociais, a arrogância, o bullying, e tudo o que conduz a trama a seu trágico final definem a abordagem que a trupe dá à montagem.
Foto: João Caldas
"A gente faz do Acáqui um revoltoso social. É exatamente o que a gente tem vivido, o confronto entre os pares, irmãos, patrícios... Todo mundo tem medo do outro, e a política não resolve nada", diz Novaes, que, antes desta, já havia dirigido outras duas peças russas (Tio Vânia, de Anton Tchekhov, e Noites Brancas, de Dostoiévski), além de atuar em O Inspetor Geral, também de Gógol.
Para Vaz também o momento político atual é oportuno para a montagem da obra.
"Acho que a peça está bem atual, é apresentada em um momento político bom para ela. Tem gente reacionária demais, uma direita furiosa", diz.
A contemporaneidade do texto em um país de extremas diferenças sociais e ódio entre as classes é indubitável.
"É muito maluco que algo que tenha sido escrito no século 19, infelizmente, ainda é um capote que nos serve muito bem", diz Novaes.
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