Ilustração: Dmítri Dívin
A cúpula do Brics, que ocorreu em julho na cidade russa de Ufá, concomitantemente à cúpula da Organização para Cooperação de Xangai, não foi apenas a prova simbólica de que o Ocidente não conseguiu isolar a Rússia com suas sanções. No ápice da presidência russa no Brics, a reunião introduziu elementos importantes no novo cenário multipolar mundial, resultando em uma série de soluções práticas.
Nesse sentido, justifica-se o investimento que a Rússia fez na cúpula. Segundo as autoridades da Bachquíria, ela custou 14 bilhões de rublos (R$ 790 milhões), embora há dois anos seus custos fossem estimados em 65 bilhões de rublos (R$ 3,65 bilhões).
A população total dos países representados em Ufá soma mais de 40% da população mundial. Além disso, eles produzem um terço do PIB global.
No entanto, o Brics não é um bloco no sentido tradicional da palavra, e dele não devemos esperar os resultados que se esperam de tais alianças. O grupo está mais para uma organização para a cooperação, com trocas de experiências e a esperança do desenvolvimento de um novo conceito nas relações econômicas.
Os países do Brics divergem em seus valores e objetivos geopolíticos. Cada um vive situação econômica diferente.
A China está desacelerando o crescimento para menos de 7% ao ano. As economias brasileira e russa vão diminuir neste ano entre 1,5% e 3,5%.
A Índia exibe, otimista, quase 8% de crescimento, enquanto a África do Sul, de 1% a 2%.
Mas até economias que não sejam tenham ligações de sinergia podem influenciar em uma arquitetura da cooperação econômica internacional que, pela primeira vez após a 2ª Guerra Mundial, não tem a participação dos Estados Unidos ou de qualquer dos países do G-7.
Os países-membros do Brics mantêm hoje suas relações econômicas mais focadas no "Ocidente global" (União Europeia e Estados Unidos, além de Japão). O volume de negócios que a China e o Brasil têm com os Estados Unidos, por exemplo, é muito superior ao volume de negócios que têm com a Rússia.
Ninguém pretende abandonar voluntariamente essa estrutura de relações econômicas externas em um futuro próximo (as sanções impostas à Rússia, que precisa buscar alternativas ao Ocidente, é outra história).
E isso de modo algum interfere na diversificação das relações externas, principalmente com a criação de uma ferramenta para tomada de decisões coletivas que seja independente do "Ocidente global".
O Brics procura novas fontes de crescimento. Um exemplo disso é a integração da União Econômica da Eurásia com a Rota da Seda, criada pela China, que atravessará o sul e centro da Ásia para chegar à UE.
Em maio, os presidentes russo e chinês, Vladímir Pútin e Xi Jinping, chegaram a um acordo para atenuar a competição demasiada entre a União Econômica da Eurásia e a "Rota da Seda".
A Organização para Cooperação de Xangai, que integra países participantes de ambos os projetos, é uma plataforma conveniente para alcançar esse objetivo, especialmente após a adesão da Índia e do Paquistão.
Muitos se perguntam o que pode haver em comum entre a África do Sul, cuja economia na atualidade está mais perto da estagnação, e os autossuficientes Índia e Brasil. Quem não encontra respostas a essa questão está olhando para o dia de hoje, e não para o amanhã.
A África do Sul é, em muito, uma porta de entrada para toda a África. E não só porque se trata de um dos países mais desenvolvidos do continente, mas também porque, com os devidos investimentos infraestruturais (já ativamente feitos pela China), é justamente a África, continente que mais cresce no planeta, quem tomará a dianteira como uma das maiores produtoras de minerais para alimentar a economia global.
Após a cúpula de Ufá, entrou em atividade o Novo Banco de Desenvolvimento do Brics, cujo capital tem potencial para chegar a US$ 100 bilhões. Trata-se de uma estrutura de financiamento independente das demais organizações financeiras internacionais – fator importante uma série de empresas russas que se encontram na mira das sanções ocidentais. Ou, por exemplo, para a Crimeia.
A função do banco é semelhante, por exemplo, à do Banco Europeu de Desenvolvimento, ou seja, apoiar pequenas e médias empresas, conceder créditos aos bancos comerciais e dar apoio a projetos individuais dos países do Brics.
O banco será parte de uma nova rede financeira internacional, paralela à já existente sob os auspícios do FMI e do Banco Mundial.
Assim, sob a iniciativa da República Popular da China, criou-se anteriormente o Banco Asiático de Investimentos em Infraestrutura, com capital que chega aos US$ 100 bilhões, dos quais a China detém 16% e a Rússia, cerca de 6%.
A esse já se uniram mais de 40 países. O Banco Asiático de Investimentos em Infraestrutura deve competir com o Banco Mundial e o Banco Asiático de Desenvolvimento, dominado pelos Estados Unidos e Japão, que não participam da nova instituição.
É significativo o fato de a China, a segunda maior economia do mundo, estar, no Banco Mundial, classificada entre os votantes de "segunda categoria" e possuir apenas 5% de participação do Banco Asiático de Desenvolvimento, contra os 15% detidos por EUA e Japão.
No âmbito do Brics está sendo criado um fundo condicional de reservas cambiais. Ele será uma ferramenta de estabilização dos mercados de capitais nacionais em casos de crise.
Além disso, o fundo independe do Banco Mundial e do FMI, que, por vezes impõem condições de motivação política para conceder ajuda.
Em caso de necessidade, a China fornecerá US$ 41 bilhões ao fundo de reserva, Rússia, Índia e Brasil entrarão, cada um, com US$ 18 bilhões e África do Sul, com US$ 5 bilhões.
O Brics ainda planeja criar um sistema de pagamentos próprio, para deixar de depender das estruturas ocidentais também nesse quesito. Afinal, a Rússia já enfrentou dificuldades quando a Visa e a MasterCard impuseram sanções contra seus bancos. Já a China, que primeiro criou seu próprio sistema de pagamento e só depois abriu seu mercado aos sistemas ocidentais, evitou maus bocados.
No ano passado, na cúpula de Fortaleza, falou-se muito da possibilidade de se criar uma moeda única que pudesse substituir o dólar e o euro. Os problemas crônicos do euro e do dólar não desapareceram, e o distanciamento desses está, de uma forma ou de outra, na agenda dos países que não querem ser passivos à atuação do Ocidente.
Começando pela transição para seu próprio sistema de pagamento eletrônico, os países do Brics chegarão, mais cedo ou mais tarde, à criação de uma moeda comum. No entanto, isso deverá acontecer em condições completamente novas, onde não apenas o dólar e o euro dominarão o mundo, mas também o yuan conversível, assim como as moedas digitais intituladas "criptomoedas" (como os bitcoins).
Além disso o Brics poderá implementar um projeto em grande escala de diversificação de fontes de financiamento. Essa necessidade é premente não apenas na Rússia, mas em muitos países que se encontram insatisfeitos com a política do FMI e a incapacidade deste em se reformular e se tornar mais adequado ao cenário mundial contemporâneo.
Assim, comparar as novas estruturas financeiras do Brics, que têm a sua disposição cerca de US$ 200 bilhões, com as do Banco Mundial, que maneja US$ 2 trilhões, não é correto. Afinal, se, por exemplo, contabilizarmos em dólares, no valor de hoje, o Plano Marshall norte-americano do pós-guerra, teremos um valor de apenas US$ 103 bilhões. No entanto, a seu tempo, ele foi mais que suficiente para implementar as metas a que se propôs.
Ou seja, a importância, aqui, está não só no montante total de investimentos, mas no funcionamento apropriado de um mecanismo novo de tomada de decisões para a criação de uma infraestrutura financeira alternativa ao FMI e ao Banco Mundial. Infraestrutura essa que seja mais justa, e não baseada na dominação de um país ou grupo de países.
Gueórgui Bovt é cientista político e membro do Conselho de Política Externa e Defesa
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